A soirée do sepulcro

“How now, Horatio? You tremble, and look pale;

Is not this something more than fantasy?

What think you on ’t?”

(Shakespeare, HAMLET, ato I, cena 1)

Uma das coisas das quais mais gabei-me por toda a vida foi o fato de ter sido agraciado com uma mente deveras racional. Nunca compreendi como o vulgo podia deixar-se enlevar por superstições e contos da carochinha, e sempre que chegava-me aos ouvidos alguma notícia a respeito de um suposto fenômeno sobrenatural explodia em gargalhadas. Para o bem ou para o mal, isto inclusive pavimentou minha estrada rumo ao ateísmo, minha Bíblia sendo desde então o “Système de la nature” de Holbach.

Curiosamente, moro defronte a um cemitério (o Cemitério de Santo —), e longe disto assustar-me sempre causou-me o maior prazer – contemplar as miríades de crucifixos e necrópoles erguendo-se no ar oferecia-me um sublime – se não um tanto quanto mórbido – espetáculo, e o que dizer das lindas estátuas de anjos e santos…! Não é de admirar-se que, mais cedo ou mais tarde, isto influiria em minha metamorfose num melancólico poeta ultrarromântico, e na falta de amigos (o que não tenho em abundância tanto por incapacidade de fazê-los quanto pela falta de interesse em aprender a fazê-los) quantas vezes os túmulos foram os juízes de minhas obras!

Outro passatempo peculiar ao qual gosto de dedicar-me durante meus passeios ao Cemitério de Santo — é estudar as lápides, com seus nomes, datas e fotografias – outras mais, outras menos bem conservadas devido à ação do inclemente Tempo, que nada deve aos vãos monumentos erigidos por nossas mãos mortais. Vejo um senhor, uma senhora, moços ceifados na flor da idade, e até mesmo crianças que mal tiveram a chance de provar das intempéries da vida terrena antes de serem convocadas de volta ao seio da Natureza (talvez devido a um grande arrependimento desta), e penso: “Quem teria sido fulano em vida?”; “Se sicrano tivesse chegado à velhice o que estaria fazendo atualmente?”; “A julgar pela fisionomia de beltrano, aparentava ser inteligente – seria algum pensador, artista, poeta talvez?”. E assim divirto-me por horas a fio, engendrando biografias fantasiosas e rocambolescas aos defuntos.

Decerto haverá o leitor de perguntar-me se não tenho medo de fantasmas, tal como várias vezes já inquiriram-me antes – deixo-lhes cientes inclusive de que, se ganhasse uma moeda a cada vez que ouvisse esta questão, não precisaria sobreviver de literatura, esta profissão igualmente nobre e inclemente à qual abracei mais pelas elucubrações do Destino do que por minha propensão e predileção por ela. Temperada por uma de minhas gargalhadas, minha resposta seguia inabalável: não! Não tenho medo de fantasmas, pois o mal que os vivos já causam-me quase que diariamente não pode ser superado por qualquer assombração, demônio, duende, bicho-papão ou coisa que o valha; confesso também que, longe de temer os mortos, sinto-lhes inveja, pois seus dias de provação sob o Sol já se findaram, enquanto eu devo continuar expiando meus pecados sabe-se lá por quanto tempo mais.

Pelo menos assim o foi até muito recentemente; se concederem-me alguma paciência e perdão pelas eventuais irregularidades deste presente relato (pois ainda o escrevo um tanto quanto sobressaltado) explicarei como fui provado assustadora e fantasticamente errado, passando eu desde então a acreditar (ao menos parcialmente) no velho discurso de Hamlet sobre haverem mais coisas entre o Céu e a Terra do que sonha a Filosofia.

O estranho caso que lhes relatarei ocorreu comigo há uns três dias, mas apenas hoje encontrei forças o bastante para registrá-lo à posteridade. Certamente haverão os céticos (tal como eu fui um dia!) que duvidarão de minhas palavras, e não importo-me com eles; podem enxergar minha história como uma invenção, conquanto que a julguem ao menos divertida – imaginem só, um escritor que não sabe divertir seus leitores…! Se entretenho ao menos a uma minoria, não ficarei preocupado com a maioria, mas jamais me perdoaria se mantivesse esta história trancafiada in petto pelo resto da vida, sem compartilhá-la com o público independente de sua aceitação como caso verídico, conto ficcional ou uma fantasmagoria sonhada por um simples rapaz de ânimos facilmente irritáveis.

Sem mais delongas, portanto, passemos a ela.

Fazia uma bela manhã de verão, e lá estava eu a passear em meio aos túmulos do Cemitério de Santo — em busca de inspiração. Conheço cada túmulo como se fosse a palma de minha mão, e até trato alguns que acho bonitos com maior familiaridade; ao adentrar o cemitério, cumprimento-os e, sentando-me em sua beirada, compartilho os pesares e alegrias de meu coração, deixando-lhes em troca de seu tempo uma flor de meu jardim, colhida por mim. Tanto é que não foram poucas as vezes que cogitei tornar-me coveiro, já que, por mais que adore minha ocupação de escritor, pouquíssimos são os Mecenas dispostos a pagar-me o preço equivalente por meus labores criativos, e não sei o que seria de mim se fosse afastado de um lugar que me é tão querido, apesar de tão heterodoxo aos padrões alheios.

Acabara de redigir um poema que, modéstia à parte, aparentou-me excelente, e com muito gosto o declamava a um de meus túmulos prediletos. Terminei a leitura, fiz uma cômica e teatral mesura perante ele e depositei-lhe a costumeira flor: “Sou pobre, e não posso dar-lhe a penny for your thoughts”, é o que sempre digo; “mas honro tua memória com esta flor”. (Se dirijo-me ao túmulo de alguma bonita senhora, quando possível levo-lhe duas flores em vez de uma.) Por alguma razão, senti meu ânimo se arrefecer: talvez levado por um arroubo de vaidade, já que de fato colocara uma confiança demasiada naquele poema, pela primeiríssima vez fiquei triste ao constatar que meus “amigos” eram lápides inanimadas, e seus ocupantes cadáveres há muito decompostos que tampouco poderiam ouvir-me ou responder-me – e possivelmente nem gostassem de poesia em vida! Lia meus trabalhos e conversava com blocos de pedra, porque não havia vivalma disposta a demonstrar-me interesse!

Guardei meus versos no bolso, pesaroso, e deplorei minha falta de companhia. Vi-me como de fato o era: sozinho, irremediavelmente sozinho, e ninguém participaria de minha felicidade por mais prazer que sentisse ao compartilhá-la. Preparei-me para voltar à minha casa, mas antes de deixar o cemitério dirigi um último olhar aos túmulos e disse:

“Oh, meus amigos, tão indulgentes para comigo, que venho perturbar-lhes no sono da morte com minhas garatujas! Quem dera pudesse ouvir-lhes as vozes… Se lhes oferecesse minha amizade enquanto ainda vivos, a aceitariam…?”

Naturalmente, não obtive resposta. “Não é como se algum fantasma fosse aparecer com o mero intuito de ouvir meus devaneios”, pensei, sardônico, seguindo meu caminho.

***

Passei, assim, o restante do dia num estado profundo de abatimento, e acrescentando ainda mais às minhas angústias, uma rotineira crise de insônia (brinde este que foi-me trazido pelas Musas a partir do dia que ouvi seu chamado) não deixou-me dormir. Resolvi, então, passar a noite em claro, dedicando-me a uma litania de reflexões; reflexões estas que, mais uma vez, permaneceriam apenas em meu coração e das quais ninguém podia participar. Entregue às minhas meditações, as horas escoavam lentamente, e nada de Morfeu aparecer para levar-me à sua terra de sonhos. Eventualmente constatei que o relógio já marcava meia-noite.

“Pois bem! É meia-noite”, pensei. “Ainda posso lembrar-me, como se fosse ontem, das histórias apavorantes que ouvia em minha mocidade… Nesta hora, os mortos deixam suas putrefatas covas e os demônios, aproveitando a oportunidade de verem-se livres dos odores sulfurosos do Inferno, saem à procura de feiticeiras com quem comungar num profano sabá… Nem a Walpurgisnacht do ‘Fausto’ lhes igualaria! E agora cá estou, constatando a verdade nua e crua…! Eram mitos, e nada mais que isto! Confesso, no entanto, que estava muito ansioso para que tais mitos desfilassem ante meus olhos no presente momento. Quem sabe trouxessem-me alguma distração!”

Vi que o sono não viria para amainar minha inquietação, então tive uma pitoresca ideia: quis sair à procura de alguma aparição fantástica aproveitando aquela hora tão auspiciosa, e ver se algo conseguiria abalar minha descrença no sobrenatural. Despi-me de meu pijama e, após vestir-me com minhas roupas usuais, parti em minha primeira noite de incursões paranormais.

***

Não surpreendentemente, nada encontrei de incomum. Andei pelas ruas da cidade por uma boa hora, ou duas, sem que bruxa, diabo ou espectro desse as caras – de longe, a coisa mais assustadora com a qual deparei-me foi um mendigo imundo e desgrenhado que dormia a sono solto numa sarjeta; visão deveras repulsiva de fato, mas demasiado humana e tragicamente costumeira. O passeio fizera-me bem no entanto, e as ruas solitárias iluminadas pela luz da Lua em seu zênite trouxeram-me inspiração para mais um poema – quis voltar para casa e escrevê-lo, afastando do pensamento o vão desejo de ver qualquer criatura mitológica, e quem sabe tentar dormir um pouco.

Mal sabia eu que o Destino haveria de relembrar-me daquele velho ditado: “Cuidado com aquilo que desejas”…!

***

Preparava-me para entrar em casa quando, olhando de soslaio ao Cemitério de Santo —, reparei ao longe um fantasmagórico brilho azul-esverdeado. “Ora!”, pensei. “Quem procura, acha – terei finalmente encontrado algum fenômeno sobrenatural, ou serei invariavelmente saudado pela frígida Ciência? Só há um modo de descobrir…” E, mandando ao diabo o sono (quando dele preciso, não vem – ele que espere agora, portanto!), corri ao cemitério a fim de averiguar a procedência daquele brilho.

O muro do cemitério não é tão alto, e até mesmo alguém como eu, inepto a qualquer tipo de proeza acrobática, poderia saltá-lo sem grandes dificuldades – e assim o fiz. Caminhei lentamente em direção ao brilho, imaginando que presenciaria algum ridículo ritual necromântico realizado por algum pobre-diabo impressionável que lera muitos romances góticos, e mal podia conter meu riso; tive que fazer hercúleos esforços para não fazer-me ser notado. Uma coisa que percebi entretanto foi que, à noite, o cemitério era mais pitoresco do que de dia: o luar incidindo sobre os crucifixos e estátuas dá-lhe uma aparência sombria, porém bastante romântica e misteriosa, e não é de admirar-se que tantos poetas de lúgubres inclinações hajam dedicado uma extensa quantia de seus versos a sepulcros enluarados. Senti-me privilegiado por saber apreciar aquela beleza que muitos não conseguem reconhecer, e pelo menos naquele momento a solidão não pareceu-me tão má: era como se aquela visão houvesse sido criada só para mim, e quaisquer outros olhos a profanariam.

Mas este é um assunto sobre o qual escreverei com mais vagar numa outra ocasião: retornemos ao que importa.

O espectral brilho foi ficando cada vez mais ao alcance de minha vista, acabando por guiar-me ao enorme mausoléu de algum magnata de tempos passados cuja única realização para ter conseguido tal cripta tão luxuosa fora, talvez, ter dinheiro demais. Várias vezes durante o dia já havia parado para admirá-lo, sendo ele o túmulo mais vistoso do cemitério inteiro, tendo quase o tamanho de uma casa – até mesmo na morte esta pretensão dos ricos de quererem aparentar melhores do que são persiste. A porta estava entreaberta: mal podia esperar para divertir-me às custas das crendices alheias! Coloquei a cabeça para dentro, sorrateiramente…

Leitor! Quisera ser capaz de demonstrar o espanto que senti por intermédio destas frias e impessoais letras! O que vi não foi qualquer pretenso necromante realizando um patético ritual, e sim três esqueletos, vestidos em andrajos, conversando animadamente à luz de velas! “É impossível!”, senti vontade de gritar. “Talvez não passem de alguns rufiões fantasiados ambicionando uma elaborada brincadeira.” Observando melhor, cheguei à conclusão que não podiam ser pessoas fantasiadas, já que aquela bizarra luz meio azul, meio verde trespassava os vãos de seus ossos desprovidos de pele de forma muito natural, impossível de ser replicada por qualquer disfarce manufaturado. Mas como aqueles esqueletos poderiam existir sob uma explicação cientificamente plausível? E o que seria de mim, se soubessem que lhes violava a privacidade? Havia visto além daquilo que queria, e na pressa de querer fugir acabei tropeçando nos próprios pés e caí de costas dentro do mausoléu com um forte estrépito, chamando a atenção daqueles funéreos convivas.

Um deles avançou em minha direção. Muito provavelmente seria transformado num deles, agora que conhecia seu sórdido segredo, e preparei-me para o pior com a frieza de um mártir, já que ninguém ouviria caso gritasse de qualquer forma. Mais surpreendentemente do que tudo até então, porém, foi ver que o esqueleto oferecia-me a mão para que eu levantasse, e aparentava tão feliz quanto um esqueleto poderia demonstrar.

“Você se machucou?”, perguntou-me. “Finalmente apareceu! Estávamos esperando por horas.”

Optei por não insultar sua cortesia, e segurei-lhe a mão. (Uma coisa que devo confirmar a respeito de todas aquelas velhas histórias de horror é que, de fato, o toque de um desmorto é enregelante, capaz de dar-lhe calafrios mesmo numa noite de verão tão morna como aquela.) Pus-me de pé e estudei o recinto com os olhos – era uma cripta tão suntuosa por dentro quanto por fora, com um enorme altar no centro encimado por um gigantesco crucifixo. O altar estava repleto de castiçais, todos contendo velas queimando com aquele fogo de coloração estranha, e um pouco defronte ao altar havia uma pequena mesa com cadeiras para quatro pessoas.

“Espero que tenha gostado da decoração”, disse outro esqueleto; sua voz tinha um estranho timbre feminino. “Eu mesma a fiz! Se soubesse como foi trabalhoso montar o candelabro…”

Instintivamente olhei para o teto, e de fato um candelabro fora dependurado lá. Era inteiramente lavrado de ossos – um adereço encantadoramente macabro.

“Acho que podemos começar então”, afirmou o terceiro.

Não vi outra alternativa fora aceitar o fato de que aqueles esqueletos eram reais; por que não dirigir-lhes a palavra, então? Suas intenções eram aparentemente benignas, mas nada conseguia compreender daquilo. Por que estavam me esperando, dirigindo-me tamanha familiaridade? Tropecei nas palavras antes que pudesse formar uma sentença completa, mas finalmente consegui proferir a seguinte torrente de indagações:

“Quem são vocês? Que têm vocês comigo? Nunca tive nenhuma intenção de desrespeitar os mortos vindo aqui! Se querem castigar-me, tenham piedade! Ou seriam vocês três assistentes da Morte? Chegou minha hora de fazer deste cemitério minha morada permanente? Eu…”

“Rapaz, calma!”, interrompeu-me o primeiro esqueleto, que ajudara-me a levantar. Colocou as gélidas mãos nos meus ombros, mas o que era para ser um gesto caloroso acabou por fazer-me tiritar de frio. “Não queremos fazer-lhe mal! Não nos reconhece?”

“Como reconheceria?”, o terceiro esqueleto indagou. Sua voz era morosa, como se tudo ao seu redor o incomodasse mesmo depois de morto. “Não vê que somos tão diferentes das fotografias em nossos túmulos?”

“Decerto”, anuiu o segundo esqueleto de voz afeminada. “Devíamos nos apresentar ao moço para que fique menos assustado.”

“Pois muito bem”, respondeu o primeiro. “Pode ser que não nos reconheça neste presente estado, meu rapaz, mas somos amigos de longa data. Nós três somos os ocupantes dos túmulos que mais gosta de visitar. Eu sou o Sr. A…, e sua poesia deixa-me muito contente! Eu era músico em vida, e gostava de cantar e tocar violino. Quem dera pudesse ter cantado algum de seus poemas então!”

“Eu sou a B…”, prosseguiu a esqueleto-mulher. “Não me surpreende que minha beleza ainda traga-me admiradores mesmo depois de morta… Morri jovem, e virgem, após ter rejeitado sabe-se lá quantos pretendentes – todos uns paspalhos! Se tivesse nascido uns 100 anos antes talvez lhe daria uma chance, pois sempre tive um fraco por poetas…” (Ouvir isto deixou-me num indescritível misto de alegria e tristeza.) “Gosto tanto de seus poemas e das flores que dá-me!”

“E eu sou o C…”, concluiu o restante. “Eu, por mim, acho sua poesia capaz de fazer um morto querer morrer uma segunda vez – quando não fala sobre amor, fala sobre a morte, a última coisa sobre a qual um defunto quer ouvir! Aquele que declamou ontem a mim… que maçada! Não me admira que ainda esteja solteiro, pois qualquer garota a quem dedica um poema de amor cairia no sono lendo-o…! Entretanto sou grato pelas flores que deixa-me; minha família não vem visitar-me há anos.”

“Pergunto-me o porquê…”, disse B… a sotto voce, irônica.

“Eu ouvi isso!”, esbravejou C….

“Em verdade”, começou a explicar A…, “ninguém vem ver-nos há muito tempo – nós, mortos, ficamos tristes quando nos esquecem. A única pessoa que nos dedica alguma atenção é você.”

“Ouvimos o que disse ontem, ao retirar-se, então quisemos demonstrar nossa gratidão”, emendou B….

“Preparamos, então, esta festa”, concluiu C…. “E se há uma coisa da qual sempre gostei, são festas. Inclusive, em vida, adorava participar delas, ainda que fosse convidado para pouquíssimas.”

“Por que será…?”, mais uma vez B… questionou a sotto voce.

“Eu ouvi isso!”, foi novamente a resposta de C….

“Então quer dizer que os mortos celebram?”, perguntei, já acostumado com a estranheza daquela situação. “O quão divertida pode ser tal festa?”

“É o que irá descobrir agora”, disse A….

***

Fui convidado a sentar-me na cadeira que era a mim destinada ao redor daquela mesa – montada com muito gosto e requinte a partir de um caixão, como A… orgulhosamente proclamou. Haviam cálices para cada um de nós com um líquido transparente que a princípio cri ser alguma misteriosa poção (estaria disposto a acreditar em qualquer bizarrice que me dissessem, tendo em vista as circunstâncias), mas para minha surpresa – e até mesmo pesar – não passava de água.

“O consenso entre nós, vivos, é que os mortos não precisam beber”, disse eu, bebendo de meu cálice já que estava com sede e teria aceitado qualquer coisa ainda que Satã em pessoa me ofertasse – era uma água gelada e bastante refrescante.

“E não precisamos”, explicou A….

“E caso ache necessário perguntar, não, também não temos necessidade de alimento”, emendou C…. “Esta água serve para literalmente limparmos a mente – é algo que sempre fazemos para colocar as ideias no lugar depois de muito tempo enterrados.”

“O processo é bem divertido por si só”, disse B… “Observe!”

Todos os três arrancaram os crânios de seus corpos, despejando a água em suas cavidades oculares. Logo puseram-se a chacoalhá-los numa série de elaborados movimentos, e após acharem que era o bastante recolocaram as cabeças, deixando que a água escorresse por seus ossos. Achei aquilo grotescamente gracioso.

“É bom já ir aprendendo, para quando chegar sua vez”, riu-se C….

E, assim, a celebração em si começou. De modo naturalíssimo conversei com aqueles três esqueletos, que eram muito eloquentes. A… cantou para nós, e para um ser desprovido de cordas vocais sabia fazê-lo muito bem – lamentou, no entanto, não ter sido enterrado com seu violino. B… não tirava suas órbitas ocas de mim, e como não tinha nada a perder, num momento de distração tomei-lhe a esquelética mão; passou ela o resto da madrugada extasiada, e eu próprio fiquei muito feliz apesar do frio que seu toque dava-me. Declamei-lhe uns versos improvisados em segredo, que apenas ela carregará consigo no túmulo – e pranteei mais do que nunca aquela afirmação que tantas vezes me haviam proferido: eu havia nascido num século tardio demais!

Por fim, nosso passatempo foi atirar pedrinhas dentro do crânio do pobre C…, e sempre que acertávamos éramos premiados com um sonoro palavrão. Assim teria passado a divertir-me até que o Sol raiasse, mas o sono viera para atacar-me com força redobrada após tê-lo enxotado – “Se fosse mais vezes convidado para festejar com os mortos, acho que nunca mais sofreria de insônia”, pensei.

“Meus amigos!”, anunciei. “Eu, como vivo, sinto cansaço… Não dormi a noite toda! Tenho sono, e gostaria de ir-me.”

“Tão já?”, inquiriu A…. “Terá tanto tempo para dormir depois de morto…”

“Veja só você”, acarinhava-me B…, “mal consegue parar em pé. Durma aqui mesmo, ao menos! Mais cedo ou mais tarde é onde todos vêm para dormir.”

“Posso?”, bocejei. Confesso que não só estava muito cansado para pular o muro novamente, como também queria aprender mais um pouco sobre as normas de convivência entre os vivos e os mortos.

“Geralmente ficamos um tanto quanto incomodados se dormem sobre nossos túmulos”, disse C…, recolocando sua cabeça e deixando que uma pletora de pedrinhas se esparramasse pelo chão. “O solo que nos é demarcado é como se fosse nosso lar, e um vivo que faz nossos túmulos de cama é visto como um sem-teto importuno por mais bem-intencionado que seja.”

“Somos muito protetores de nosso solo”, continuou A…. “Por isso entre nosso meio covas coletivas são um desastre…! Há uma cova ainda não ocupada se seguir à esquerda… Pode pegá-la emprestada por hoje, se o quiser.”

“Dormir numa cova é a menor de minhas preocupações depois de hoje”, disse eu com mais um sonoro bocejo. “Podem me acompanhar até lá?”

“Claro que sim!”, exclamou B…. Apagamos todas as velas, encerrando nossa sepulcral celebração, e meus amigos guiaram-me a um largo e espaçoso buraco cavado no chão a pouca distância dali.

“Cá está”, A… apontou-o a mim. “É bom não reclamar muito, pois pode ser que acabe num igual a este…”

“É perfeito”, respondi, descendo ao buraco que talvez um dia haveria de receber-me em definitivo. “Muito obrigado por hoje, amigos! Nunca me diverti tanto.”

“Não tem de quê”, A… prosseguiu. “Espero nos reencontrarmos em breve!”

“Ou talvez não tão breve assim…” emendou C…. “Ainda tem uma longa vida pela frente, rapaz.”

“Quando sua hora chegar, procure por nós do outro lado!”, encerrou B….

“Nunca irei esquecê-los!”, exclamei. “Virei visitar-lhes sempre! Adeus, amigos!”

“Adeus!”, despediram-se em uníssono os três, deixando-me para repousar naquela cova que, ao menos naquela hora, foi-me o mais luxuoso dos leitos. O que fora aquela noite? Minha cabeça girava de estupefação e exaustão, e ainda estava tentando concatenar aquela sequência de acontecimentos – o sono, porém, finalmente arrebatou-me, e dormi maravilhosamente bem, como nunca antes havia dormido. Uma das últimas digressões que passaram por meu cérebro antes de adormecer fora o fato de ter sido tão bem tratado por seres do Além enquanto meus compatriotas nunca dedicaram-me um olhar – mas se fantasmas verdadeiramente existiam, não mais haveria de sentir-me sozinho, e isso era muito agradável.

***

Acordei com o Sol fustigando-me os olhos, e com o corpo um tanto quanto dolorido de ter dormido num buraco no chão. Limpei a terra de minhas roupas e saí daquela cova, aliviado por aquele cemitério ser tão pouco frequentado; muito provavelmente teria sido tomado por um morto-vivo por algum pobre incauto que lá estivesse de passagem, e ri-me só de imaginá-lo. Assim que meus olhos se habituaram à claridade do dia, contemplei o bom e velho Cemitério de Santo — como sempre o fora: deserto e mundano, sem quaisquer indícios de fenômenos sobrenaturais. Pouco a pouco, minhas memórias do dia anterior foram retornando; lembrei-me da ânsia que sentira em ver acontecimentos incapazes de ser explicados pela Razão, e daquela visão de três amigáveis esqueletos que convidaram-me para uma festa. Como era de se esperar, não encontrei nenhum vestígio de suas existências, e tanto seus túmulos quanto o enorme mausoléu onde receberam-me estavam incólumes. No cúmulo de minha obsessão, certamente havia alucinado e, privado de sono, desmaiara naquele buraco, onde sonhei com tudo aquilo, foi o que tentei dizer a mim mesmo. “Não vou negar, no entanto, que de todos os sonhos que tive este foi de longe o mais interessante e divertido”, pensei. “Aposto que, se o registrasse, o achariam um fantástico, delirante conto!”

Depressa ia partir dali, ávido para contar aos poucos amigos que tinha sobre minha louca aventura sonhada, quando percebi que algo caíra de meu bolso. Abaixei-me – era uma flor, bastante semelhante àquelas de meu próprio jardim. Não me recordava de ter trazido qualquer flor comigo… Ao redor de sua haste havia um envelhecido pedaço de papel amarrado com barbante; a curiosidade matava-me. Desatei o barbante e, trêmulo de choque, li o que estava escrito no papel. Não continha mais de duas linhas, mas foram o suficiente para que quase desmaiasse de vertigem:

“UM SOUVENIR DE UMA FESTA INESQUECÍVEL.

DE SEUS AMIGOS A…, B… E C…”

***

E assim chego ao final desta insólita história. Mais uma vez não peço que acreditem em mim, mas posso mostrar a flor e o bilhete a quem estiver interessado. Longe, porém, de tal experiência ter-me dissuadido de continuar frequentando meu querido cemitério, continuo visitando-lhe assiduamente e conversando com meus túmulos com um prazer ainda maior – até os mortos precisam de companhia às vezes, acredito, e fico contente de fornecer-lhes a minha. Orgulhosamente proclamo que esta minha aventura despiu-me do negro manto do Ceticismo, e meus inimigos passaram a ser não as crendices populares em si, e sim os torpes indivíduos que delas abusam. Quantos pretensos magos e médiuns não vemos por aí, valendo-se de seus supostos “poderes” para finalidades escusas…! Não sei o quão escuso é empregar esta dádiva para redigir um tão excêntrico conto que cairá nas mãos de muito, muito poucos, mas que estes poucos estejam certos de que, ao contrário do que diz o adágio, os mortos podem, sim, contar histórias – é só fazer merecer por ouvi-las.

(12 de janeiro de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 02/08/2010
Reeditado em 12/01/2022
Código do texto: T2414600
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