Sonata noturna

Adéle morava na Rue aux Fers, próxima do Cimetiére des Innocents. Não era um lugar adorável para se viver, uma vez que o cemitério recebia, diariamente, levas de cadáveres vindos do hospital Hôtel-Dieu, que exalavam seu cheiro de putrefação por dias.

A vizinhança toda já se habituara, afinal, não havia o que fazer, uma vez que os mortos tinham que ser levados para algum lugar.

Adéle já nem notava mais o cheiro ruim, dedicando-se aos trabalhos da casa durante o dia. Era a filha mais nova de um sapateiro e, como sua mãe morrera de peste quando ainda era pequena, ela era a encarregada da organização da casa e da alimentação do pai e dos três irmãos mais velhos.

Não reclamava de sua vida, pois sabia haver mulheres em situação pior. Fazia o serviço de casa e às vezes ajudava na sapataria, recebendo o carinho do pai como pagamento.

Estava, certa noite, penteando os longos cabelos lisos, com a janela aberta para entrar luz de luar e estrelas, quando um som triste, distante, penetrou o recinto.

Curiosa, Adéle seguiu até a janela e postou-se ali em silêncio, tentando captar a direção do som. Era tão lindo ouvir aquela música distante... Era triste de tal forma, que o coração da moça começou a impeli-la a ir atrás de quem quer que fosse o executor da melodia, apenas para tomá-lo nos braços, num abraço cheio de afeto, para arrancar-lhe a melancolia da alma.

Abriu a porta do quarto e constatou que os irmãos e o pai já dormiam a sono solto. Colocou o vestido de volta no corpo e a toca nos cabelos e saiu de casa com lentidão, para não acordar ninguém. Estando na rua, pôs-se a caminhar com vigor na direção da música. Vinha de algum lugar entre a Rue aux Fers e a Rue de la Ferronnerie, para onde ela seguiu.

Parou em frente ao Cimetiére de Innocents, onde a música se tornou mais forte, bom como o odor nojento dos mortos. Com um suspiro de náusea e curiosidade, Adéle transpôs o portão do cemitério, e seguiu o som até a frente de um túmulo cinzento, que desprendia um brilho fantasmagórico com a luz do luar.

Por um instante, acreditou ter perdido a sanidade. Estaria o anjo do túmulo fazendo aquela canção apenas para jogar com ela? E então, ela viu que ao lado da morada do morto, estava um homem em trajes negros. Tinha cabelos longos e escuros, que caiam ao lado de seu rosto enquanto ele tocava um violino., com os olhos fechados.

Não pareceu notar a presença de Adéle, que ficou ali parada, quieta ouvindo.

Quando terminou de executar sua canção, o homem abriu os olhos e mirou a moça. Passou-se algum tempo até que ele tivesse qualquer ação.

-Você é um fantasma?

-Não... - Ela sorriu.

-Fico feliz. Isso prova que não perdi completamente minha sanidade, minha bela. - Ele disse, sentando na borda do túmulo e pegando do chão a caixa para guardar o violino.

-Por que o senhor veio tocar aqui? Não parece ser qualquer pessoa para se enfiar nesse lugar...

-Os mortos também merecem algo que alivie suas almas. E eu, algumas vezes, gosto de perturbar os meus sentidos com essas excursões noturnas. Nos salões eu posso tocar as músicas que alegrem e façam dançar. Aqui posso deixar me vazar a alma e qualquer aflição que me tenha tomado.

Adéle refletiu sobre isso. Aquele homem parecia muito triste, como se alguém tivesse roubado a alegria de sua existência.

-Pois eu gostaria de ouvir uma música tão linda mais vezes. - Ela suspirou. - Porque também não posso deixar que a tristeza me consuma nem que me leve a energia do corpo, já que tenho obrigações em minha casa.

O homem nada disse. Fechou a caixa de seu instrumento e levantou-se, indo até ela e estendendo-lhe uma rosa. Não era das mais velhas. Talvez ele mesmo tivesse trazido para depositar em algum jazido.

Ele fez um aceno com a cabeça e partiu, indo na direção da escuridão e deixando Adéle sozinha com a flor na mão.

Ainda perturbada com o episódio, a moça saiu do cemitério e voltou para casa. Não falou nada sobre seu encontro com o misterioso violinista a ninguém, mas não deixou de pensar nele o dia inteiro.

Na noite, quando se encontrou novamente sozinha no quaro, começou a ouvir uma música distante... Que foi se aproximando cada vez mais.

A melodia passou por sua janela, junto com uma nova rosa, que fez com que ela sorrisse, mirando a face límpida da noite, e descesse as escadas da casa outra vez, para consolar a tristeza de duas almas nas ruas de Paris.