O ÚLTIMO MAGGOT

Aos poucos foram dispersando aquele grupinho que se encontrava todas as noites de sexta-feira ali ao meio daquela praça. Era uma turma de maggots, esses meninos que se vestem de preto, cultuam bandas como Slipknot. No total podiam ser mais de dez, alguns tinham cabelos compridos, as calças jeans às vezes surrada, alguns usavam sobretudos mesmo se estivesse um calor abrasante. Espantavam os transeuntes vê-los assim, pintados os rostos, sempre mal encarados, mesmo o pipoqueiro – sempre tão sorridente e cabeça chata – ficava de repente sério quando um deles vinha comprar pipocas, mas não deixava de reparar alguns desses rostinhos assim tão infantis e dóceis, os cabelinhos alourados de alguns, outros mesmo pretinhos tinham certa infantilidade num sorriso de dentes alvíssimos; alguns pegavam a fumar, as mãos ocultas pelas mangas longuíssimas do sobretudo, apenas se vendo o bastão do cigarro, subindo a fumacinha tênue, sentados, sem falar nada, cismando com os próprios tênis, sempre encardidos, com a ponta branca riscada, desenhada uma caveira a caneta, mas um desenho de qualquer jeito.

Pegavam-se um a admirar a camisa do outro, assim emocionados, um de pé, outro sentado, apontando o dedo, a unha pintada de preto, das mãos saindo da longa manga do sobretudo. Tinham um desses que lourinhos, assim magérrimos, toda roupa muito frouxa, ainda sustentavam coturnos e parecia que ia desiquilibrar e cair, mas era por que ria de um mais gordinho que com fones nos ouvidos dava saltos, quase envergava; um outro magricela e mulato soltava cambalhotas, ficava no ar, a blusa sobre o rosto, de ponta a cabeça. Sentiam certos olhares, espantados, fascinados, mas eles aspiravam aterrorizar, assim quando gargalhavam, seguravam garrafas pet de vinhos ordinários comprados em supermercados, e que iam passando de mão em mão, acomodando-se entre os encostos dos bancos de pedra, o mais magrinho e lourinho, sentava triste, mais distante quase na calçada, os joelhos juntos, o jeans rasgado por ali, os coturnos pesados. Quem o visse de longe creriam ver uma menina, assim tão dócil na expressão do rosto alvo, os cabelos escorridos, deixando escapar um leve sorriso de canto dos lábios quando as gargalhadas aumentavam entre os outros atrás de si.

Onde estão meus amigos, perguntou-se um dia, lourinho, magrinho, sozinho, num calor de quase quarenta graus vestindo um sobretudo preto, os pés sustentando coturnos pesados, os cabelos claros e um pouco alvoroçados vindo aos ombros. Era tão frágil a expressão fatal de seu semblante, encarando mal humorado os que o olhavam indignados. Mesmo indignados? Não, não podia saber, mas acreditava tão sério como a força que fazia para deixar de acreditar no anjo secreto que o protegia, assim havia dito sua mãe, e ele era de se olhar no espelho, admirar-se que era belo, sentado à penteadeira, algumas bugigangas espalhadas como um lápis de olho que era só o cotoco, um resto de batom, mídias sem capas. Tudo se refletia ao espelho como moldura para seu rosto, mesmo as figuras adesivadas ao contorno.

Percebeu que estava sozinho, os maggots outros pareceram mudar de repente ou isto vinha acontecendo sem atitudes que pudessem ser perceptíveis, por que com os daquela idade era assim, algo ou tudo mudava como a acender e apagar de uma lâmpada. E era incrível que ele nem parecia surpreso ou dignamente ofendido. Sacudiu os ombros, entrou num supermercado, feliz por causar aquela estranha impressão nos outros, que ficavam espantados pelo seu visual, mesmo o sobretudo aberto exibindo a camisa com a estampa do Slipknot. Tinha algumas moedas nos bolsos daquele sobretudo, contou-as na palma da mão pequena de dedos longos, unhas roídas e tingidas de preto. Comprou o vinho ordinário na garrafa pet, entregando as moedas à mulher sentada ao caixa, que ficou olhando-o entre espantada e sonolenta, com uma caneta presa ao cocuruto da cabeça. Ele sorriu para ela, e ela agora desviava os olhos imensos das moedas que conferia para o rosto ambíguo do menino, e por um só momento perguntou se ele não sentia calor com aquela capa, ele apenas sacudiu os ombros e sabia bem que isto não fora resposta, mas saiu mais orgulhoso, empertigado, os cabelos resvalando pelos olhos, um sorriso escondido, a garrafa de vinho pet no bolso do sobretudo, lembrando que tinha apenas quinze anos, mas passava sempre com uma garrafa de vinho daquelas toda vez naquele supermercado. Uma vez o gordinho de cabelos enrolados dissera-lhe que aquele vinho talvez não fosse considerado bebida alcoólica, e por isso sempre fora aconselhável que ele, por parecer bem mais velho, que fosse comprar a cerveja.

Mas aonde estavam os outros, bom, que não viessem, logo anoitecia, e apareceu aquele pretinho, de jeans, tênis, camisa do Iron Maiden, abrindo um sorriso, cumprimentando o loirinho no sobretudo, pois curtia Heavy Metal de verdade agora, desde sempre, hem, não ia ficar pagando de maggot em praça movimentada, mas não lembrava que se deitavam pelas calçadas, largados, melancólicos, cheios de desejo de morte e de ira sem ter ainda contra o que. Não se sentiu ainda só o lourinho, quando o amigo disse que ia rondar por ai, encontrar os outros, ninguém ia vir mais àquela praça, compreende, ali eram conhecidos como maggots. Sentou-se a calçada, bem no meio fio, escolhendo um canto menos movimentado, abriu a garrafa de vinho, levou-a a boca cheio de sede, mas os pelinhos de seus braços por sob as mangas longas do negro sobretudo arrepiaram-se e ele conteve o máximo que pode a careta contrita. Lembrou-se de uma musica do Slipknot, outra, mas seu ipod estava em seu quarto, e por isso escondeu a garrafa por baixo do sobretudo e voltou para casa.

A mãe cochilava no sofá, a televisão ligada em alto volume, as portas e janelas abertas para o quintal escuro. Ele deixou tudo como encontrou, seus passos eram tão macios quanto podia calçado com aqueles coturnos pesados, tanto que ele parecia cada vez mais desiquilibrar, indo direto para seu minúsculo quarto, com uma cama de lençol amarfanhado, cobertas jogadas ao chão junto com roupas pretas, avessas algumas, mas reencontrando o computador ele sentiu a vontade de ficar, por isso acendeu a luz, mas sem despir o sobretudo ou mesmo tirar os coturnos, sentou-se na cadeira em frente ao computador, ligando-o, fascinado, abrindo um sorriso, afastando os cabelos dos olhos assim com as duas mãos, mas logo levou uma dessas mãos ao mouse, conectando-se, percebeu que seus amigos estavam off. Eles não estavam on também lá na praça, nem ali. Deixara o recado aquele “...Não ia ficar pagando de maggot em praça movimentada”. Era assim agora, mas ele amava Slipknot, Mudvayne esses assim, suas mascaras monstruosas e caretas. Abriu um sorriso aspirando malignidade, mas eram em lábios finos, róseos, num queixinho curto em um rosto longo coberto pelos longos cabelos loiros; colocou fones nos ouvidos, acionou vídeo e musica, observando obliquamente que seu ipod estava ali mesmo à mesa do computador. Mas seu mundo agora era outro, vivia naquela musica, naquele vídeo, ele era aquele garoto indo trabalhar no açougue, vendo os porcos sendo esquartejados e expostos à vitrine, mas não era bem assim o bife suculento que a mãe tirava cru de um prato na geladeira e o espalhava sobre o óleo quente numa frigideira, servindo-o num prato com arroz, e que ele comia com certa sofreguidão e lentidão de quem já estava enfastiado; na verdade seu estomago, suas entranhas um pouco que se embrulhavam, sua cabeça embaralhava, o grande magricela fazia piruetas no pátio da escola, enquanto deviam estar à aula, mas ausentavam-se por tedio, grandemente, ele loirinho e cabeludo encostava sua cabeça sobre os braços cruzados na carteira e dormia, sonhava, os fones nos ouvidos ocultos pela longa cabeleira loura, e para a professora ele não passava de um menino quieto, embora às vezes estranho demais para sua idade, havia alertado a mãe, mas está bocejou tanto a ouvindo, Ah, tá bom, tenho que trabalhar, as crianças são diferentes hoje né, ou mesmo sempre foram diferentes, sempre estranham os adultos, seu menino é tão normal, mesmo saindo de sobretudo preto em pleno mês de janeiro, tão quente lá na calçada, mas maio o mês que as aulas fervem que anormal é?

O menino não percebeu que a noite avançava, mesmo algum maggot ainda restante, tornando-se ali on line o chamou, conversavam sem dialogo que houvesse, os caracteres definiam mais expressões. Ele nem se espantou, nem mesmo tirou os fones dos ouvidos, a mãe parada ao umbral da porta, os cabelos um pouco revolto, a cara sonolenta, querendo saber por que ele desistira da rua. É claro que ele não disse, por que mesmo ele nem sabia por quê. Ele ainda era muito novo para sentir solidão, mas saiu de madrugada, colocando por baixo do sobretudo a garrafa pet do vinho ordinário, saindo devagarinho, deixando a luz da sala acesa como a encontrara agora, e saindo tão devagar sem querer que a mãe soubesse, sabendo que ela dormia sono alto em seu quarto, pois ela trabalhava ao amanhecer mesmo sendo sábado.

A rua estava entre deserta e movimentada, com as luzes de alguns postes apagadas, e o menino loirinho e cabeludo naquele sobretudo preto, arrastando coturnos pesados, levando de quando em vez a garrafa de vinho guardado à boca, assim mais quando se recortava sobre as sombras, cosendo-se pelas paredes. Afastou-se de certo movimento aberto, iluminado como uma clareira de súbito numa floresta escura. Era próximo a uma boate, carros estacionados, casais em roupas coloridas se abraçando, cheiro de perfume adocicado, mas ele acabou comprando dois cigarros aromatizados a uma vendedora ambulante que saíra a porta da boate justamente para fumar. E prosseguiu, fumando, encantado com o aroma que emanava da fumaça do cigarro, um cheiro de canela, e quase se esqueceu do vinho doce e quente. Chegou a um ponto, em uma rua cuja solidão era refletida sobre a imagem de certo vento doido que trazia ecos de sons de outros lugares agitados, e aos poucos, andando a arrastar os coturnos pesados, deliciado com o tragar do cigarro aromatizado, o menino chegou a um lugar úmido, aceso pelo chão de areias moles, e galgando aquele solo, alcançou pedras um pouco frias, sentou-se sobre uma delas, enterrou a garrafa pet do vinho quente e doce na areia mole ali ao seu lado, acabando de fumar o aromatizado cigarro, então atirou ao mar escuro ao longe o resto aceso daquela guimba, soprando pelas narinas um resto tênue de fumaça, impregnado daquele aroma. Encostou um dos cotovelos a um dos joelhos, a mão apoiando-se ao queixo, meneando os cabelos para trás num gesto sutil, gracioso, sem se desiquilibrar, lançando por ultimo um olhar a garrafa enterrada pela metade na areia ao seu lado, e desfazendo-se da pose reflexiva, levou as mãos aos bolsos do negro sobretudo, apalpando-os, numa busca pouco aflitiva, e abriu um sorriso para o objeto pequeno e metálico em suas mãos, com os fiozinhos pretos que eram os fones agarrados. Havia trazido o ipod, e mesmo acionou o objeto, colocando os fones nos ouvidos, mas com apenas o polegar de unha roída e preta ele buscou o arquivo que queria. Abriu um sorriso de queixo, sentiu um vento nos cabelos, acomodando-se sentado na pedra e confortado pelo sobretudo embora não estivesse frio, antes corria uma brisa evanescente que vinha do mar escuro e cujos rumores ele não podia ouvir por que seus ouvidos estavam ocupados com o som do ipod, sim, ele não podia negar que aos poucos ia apreciando o Heavy Metal, mas era bom resistir assim como maggot, pois queria ainda tanto curtir este momento, mas momento que ele chamava de vida, toda uma vida, era assim, Antigamente eu fui assim, seria ele apontando depois os que viriam e chegariam aquela praça, deitar-se-iam pelas calçadas, os braços jogados para cada lado, de pretos, um pouco sujos, melancólicos, mas ele ainda era assim, e por isso desceu entre as pedras da encosta e chegou a praia. O mar tinha o negro azulado da noite, e alguma gaivota noctiva arriscando um voo baixo sobre as ondas lentas e rumorejantes, mas somente longe, muito longe de onde ele estava podia avistar um casal engalfinhado sobre as pedras de um arpoador, um cão com frio encolhido a encosta de areia. Ele era claro apenas nos cabelos loiros, mas ocultou-se sobre um ponto ainda mais escuro, mesmo sentou-se na areia úmida e mole e negra, talvez pela escuridão, mas seus cabelos dourados eram agora como cinza prateados, e fechando o sobretudo, enterrando novamente a garrafa pet do vinho ordinário só que desta vez numa areia mole e fria, ele fechou os joelhos, cruzou-os com os braços, mesmo encostou o queixo entre os joelhos juntos, abraçando-se, os cabelos revoltos sobre o rosto, cobrindo os olhos, entre os lábios levemente abertos a respirar, os fones nos ouvidos, a musica entrando dentro dele, sim era Iron Maiden, mas ele ainda não desistira do que era neste antigamente, e vivia tão somente no presente este tempo já passado, e por isso enormemente, impregnado daquela solidão ampla, úmida e escura, deitou-se melancolicamente sobre a areia, quase junto onde as ondas ainda podia chegar se quebrando, e com os cabelos desalinhados no rosto que se abria num sorriso repleto de ambiguidade, mas muito bem protegido pelo sobretudo pouco sentia a umidade, a proximidade das ondas, apenas o intenso aroma de maresia. Jogou os braços para os lados, largando-se assim como sempre fazia nas calçadas, mas se ria de si mesmo, respirando tenso de gargalhar, e achou confortante quando sentiu o focinho frio do cão aproximando de seu nariz assoprando hálito quente.