SOLIDÃO URBANA

Refugiei-me ali naquele botequim, antes com certo receio que estivesse fechando, mesmo ouvindo um som murmurante de um radio ligado lá dentro e certas risadas insípidas e confusas, mas bati na porta e alguém disse seco como minhas batidas na cortina de ferro que pudesse entrar que estava aberto, apenas entrecerrara para que o vento lá fora não incomodasse, que fizesse o favor sim, podia fazer o favor, era bom que entrasse, assim se agachando, e assim obedeci, afinal a noite era de vento gelado e cortante, e eu tinha alguns “caraminguás” na carteira para uma boa dose confortante de conhaque ou quem sabe uma cerveja ou duas depois, pensando em nada, olhando para o nada.

O botequim não estava cheio, apenas três homens mal vestidos sentados ao banco comprido junto ao balcão cada qual com um copo e uma garrafa de cerveja, dois destes discutiam sobre futebol e o outro solitário alisava muito o rotulo da sua garrafa de cerveja, às vezes os dedos passeando pelo corpo da garrafa como se delineasse o corpo de uma fêmea, e mantinha certo olhar mortiço e lúbrico, quase hipnótico.A luz do ambiente era cambiante, quase como se fossem refletidas das paredes azuladas.Procurei logo um banco distante dos demais, e o homem gordo atrás do balcão sorriu para mim com um canto só da boca e lépido alisou o compensado do balcão com um trapo imundo, e seus olhos muito espremidos com rugas nos cantos parecia perguntar-me então o que eu queria para beber? Lancei um furtivo olhar para a maquina de café junto a pia de inox, mas fascinei-me pelo aparador na parede à minha frente cheio de garrafas de bebidas, empoeiradas, até mesmo havia uma tênue teia de aranha entre uma garrafa de catuaba selvagem e uma de xiboquinha; e a garrafa de xiboquinha eu podia notar que estava quase pela metade.Perdi o olhar assim, quase enxergando também a animada imagem de São Jorge derrotando o dragão, a vela acesa que parecia artificial mesmo com sua chama acesa.Então o homem tentava me decifrar, apoiado sobre o balcão, com o trapo numa das mãos assim embolado, é que meu olhar assim que se desvairou logo quedou para o trapo embolado na sua mão, e depois foi subindo até encontrar seu sorriso caricato e engordurado e assim pelos cantos dos olhos.Sorri já que era assim, abanando as mãos sem jeito, ele então queria saber o que eu desejava beber embora nada ainda houvesse dito, e junto de mim vinha às vozes dos meus “companheiros” falando em tom de voz alternadamente, rindo secamente, amargamente.

_ Vou querer uma “S...” bem gelada! Exclamei e ao mesmo tempo achei minha voz muito alta, por que os “companheiros” lançaram-me um olhar cansado e desconfiado, e vacilei levando uma das mãos a boca.Um gesto bem feminino.

A cerveja veio imediatamente logo notei o trapo imundo caindo junto a pia, todo espalhado.A garrafa castanha tinha nevoas brancas de gelo, e quando despejei no copo, pelo cheiro senti que estava gelada demais.Sem saber ao certo para onde olhar, tentei achar da onde vinha a musica quase inaudível.O som do vento lá fora era mais denso, parecia cortar a noite desabada, sacudia mesmo a cortina de ferro entrecerrada.O solitário alisava ainda a garrafa de cerveja, parecia mesmo querer aproximar a boca ressequida da garrafa suada, e largando o copo pela metade com a espuma já extinta; ele passava mesmo os dedos entre a curva da garrafa, circundava com o dedo indicador o rotulo de um modo esdrúxulo e sensual.Tendo ele lançado um olhar de soslaio para mim, afastei o olhar e bati de frente com as costas largas do homem gordo atrás do balcão, que lavava copos meio que furiosamente, assobiando.E a vela junto à imagem do santo parecia oscilar sua chama ante ao vento que podia entrar.O homem novamente pegou o trapo para secar o inox que norteava a pia. Único pedaço mesmo limpo de todo aquele...Bom, o trapo foi largado com violência junto ao balcão como se o homem gordo precisasse descarregar sua raiva então.Os dois “companheiros” que discutiam futebol assim falaram sem querer “Sabe certa noite...” e se me pareceu que cuidaram em falar em tom velado um para o outro, chispando esgares de olhar para o vizinho solitário a alisar a garrafa, já que continuava assim, o copo parecendo intacto; a musica inaudível ainda seria a mesma? Concentrei-me em meus pensamentos, obsessivos, tomando de um só sorvo do primeiro copo, logo enchendo novamente o copo, e o homem gordo atrás do balcão parecia me encarar expectante, mais animado, porem logo percebendo que eu o vira me encarar daquela forma, tomou novamente do trapo em suas mãos e ficou a zanzá-lo pelo ar como se espantasse moscas, e uma ricocheteada pareceu atingir de chofre a pequena vitrine onde ficava os maços de cigarro e o homem percebendo-me olhar riu constrangido consigo mesmo.Voltei atenção para o meu copo ou para os meus pensamentos obsessivos sei lá, e acabei por tomar de uma vez como quem toma um remédio preciso e enchi o copo novamente, e o homem gordo não olhou para mim porque os dois “companheiros” que discutiam futebol pediram mais uma cerveja, e este atendeu prontamente assobiando, menoscabando o trapo novamente junto a umas caixas de cerveja ali empilhadas. Quando se voltou notei seu atarantar diante da procura do trapo, mesmo me pareceu rodar em círculos diante de si mesmo, talvez aflito, como se o trapo pudesse ser uma criança que desapareceu, e estive pronto a dizer onde estava então como para socorrê-lo, se me pareceu que minha boca ia se abrir, mas logo ele achou num sorriso que pareceu dizer “Ah, se escondeu ai hein”.Neste ínterim, os dois “companheiros”’ que discutiam futebol pareceu enveredar “...Ela mesma, ela mesma...Estou sabendo” e no mesmo tom velado de voz, um cutucou o próprio olho esquerdo mostrando para o outro; aproveitei e pedi mais uma cerveja, o homem gordo pareceu dançar uma valsa quando se virou diante de mim com a garrafa nova trocando pela outra.Usou o trapo para secar o fundo de onde ficara a primeira garrafa.Gesto que me pareceu inútil já que depositara outra no mesmo lugar.Observei-o com carisma já, e não disse nada, mesmo esperei que abrisse para mim a garrafa, desviando o olhar obliquamente de vez em quando.

Alguém acabara então de esgueirar por entre a cortina semicerrada, um homem negro e forte que pediu um maço de cigarros num gesto autômato e apressado, já lançando cédulas sobre o balcão, apressando em manter as mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta preta, e só mesmo tirou-as para pegar o maço e as moedas de troco que enfiou no bolso junto com as mãos, e quando lhe desviei a atenção notei sua voz ecoando sem um sentido ainda revelado:

_ Você aqui seu veado!

Enrubesci, voltando o olhar perturbado obliquamente, sem ainda atentar se seu tom de voz era bom ou mal; mesmo os “companheiros” que discutiram futebol pareceram emudecer com olhares envoltos.Mas logo vi que ele se aproximara camarada do que estivera todo tempo solitário a alisar a garrafa suada, e mesmo tirara uma das mãos da jaqueta para apertar a mão deste, que ofereceu da cerveja choca com voz débil e sem vontade.

_ Mas não, mas não – acabou dizendo, batendo na barriga por sobre os bolsos da jaqueta – estou de dieta destas coisas, mas apenas por enquanto, apenas por enquanto – avisava enfaticamente, alegre, alvorotando o ambiente que se tornara ainda mais emudecido com sua entrada, como que se intimidasse o ressonar das vozes que antes ousavam sair.

Esvaziei meu copo de uma vez e aliviado notei o resto de espuma rala na garrafa castanha.Os dois “companheiros” que discutiam futebol já pediram a terceira cerveja, e eu já abria minha carteira para pagar então, e por isto o homem gordo me atendeu primeiro, fazendo um sinal para os outros dois que esperasse, e quando recebi meu troco, e pus a carteira no bolso traseiro da calça, o homem atrás do balcão se dirigiu para os outros com uma garrafa e abridor, ao mesmo tempo em que o que alisava antes a garrafa pediu mais uma cerveja querendo animar o outro que se recusava acariciando o maço de cigarros dentro do bolso da jaqueta, e então vi que o homem gordo dançava era um bailado em torno de si mesmo, animado, assim aproveitei e debrucei-me sobre o balcão e então meus olhos afoitos acharam...E lépida e furtivamente, sem titubear lancei mão no trapo trazendo-o comigo na desabalada carreira, em que escapei dali de dentro com este numa rasteira pela cortina entrecerrada para dentro da noite uivante.

Rodney Aragão, 03 de agosto de 2007