BOSQUE DAS FALENAS

A vida de Laura não foi uma alameda de luz suave, mas uma vereda de duras trevas. Era filha única de pais separados. No colégio era uma aluna solitária e de poucas palavras. Na infância nunca recebera do seu pai o amor que necessitava para ser uma criança feliz. Sentia-se rejeitada por ele e culpada por isso. No dia do seu aniversário de quinze anos, perdeu a mãe num trágico acidente de trânsito. Foi morar com o pai, que havia casado novamente após a separação. A sua madrasta sempre a tratou com indiferença, desde o primeiro dia em que colocou os pés na sua casa. O pai era alcoólatra. Quando não estava de serviço, costumava frequentar o bar da esquina.

Vieram os espinhos, foram-se as flores. Laura viveu a sua nada invejável adolescência nesse ambiente de distanciamento afetivo. Não suportava a ideia da finitude da existência, pois a conheceu de uma forma trágica demais para uma adolescente. Buscava a imortalidade no espelho da noite, no qual projetava toda a sua esperança. A noite rogava-lhe que chamasse à vida o interesse que havia perdido pela sua própria vida. Era o seu tema vital. O início e o fim do seu romance existencial. Era tudo para ela. Experimentava uma sensação de plenitude quando adormecia o dia e despertava a noite. As sombras arquetípicas da sua alma noturna estimulavam o talento literário, a inclinação natural para retratar com palavras a face aterradora e negativa da vida nos mínimos detalhes. A morbidez da noite a seduzia.

Aos vinte anos conheceu Gustavo, com quem se casou e teve uma filha. A sua vida ficou iluminada com o nascimento de Renata, mas a felicidade duraria pouco. Infelizmente. Vítima de osteossarcoma, a filha faleceu aos quinze anos. O destino não quis que ela provasse por muito tempo o sabor amargo e fugaz da vida terrena. Nesse dia o mundo encantado de Laura também morreu, fazendo com que se arrastasse pelos caminhos da sua malfadada vida com a alma enlutada, triste como a flor que murcha no estio, curvada sobre as águas turvas de um rio poluído. A vida perdera o brilho e as cores. Tudo à sua volta ficara sombrio e acinzentado. No ano seguinte à perda da sua filha, escreveu um livro intitulado “Meu Destino”, um romance gótico, numa tentativa de esculpir mentalmente a imagem do seu infortúnio sob a forma de um vampiro emocional que se alimentava da energia vital das suas vítimas, a quem deu o nome de Meia-Noite, um representante imaginário de aparência horrenda que ficou gravado na memória de um momento traumático da sua vida. Escrita com afinco ao longo de dois anos, a sua obra literária foi recusada por várias editoras, até que, depois de muita perseverança, conseguiu que fosse publicada pela editora de um amigo do marido, que compreendia o motivo da sua obsessão, porque dispunha de sensibilidade suficiente para perceber que a ocupação da esposa era o sentido que ela encontrara para a vida.

Segundo Laura, o vampiro psíquico Meia-Noite, extremamente egocêntrico e soberbo, simboliza o lado severo e impassível do mundo, enquanto que o tridente representa o instrumento de dominação social pelo poder econômico, quando isso for possível, ou pela força bruta, sempre que se fizer necessário. Para essa escritora dramática, a literatura gótica é um estilo que se caracteriza pela capacidade de mostrar ao leitor os seus próprios fantasmas ocultos, os quais procura manter numa espécie de masmorra psíquica, ou seja, num nível abaixo do patamar da consciência. No contexto do romance, ficam evidenciados os porões escuros dos desejos mais reprimidos, dos devaneios mais ensandecidos e das quimeras mais fantásticas. Existem diversos estilos individuais, mas as motivações dos romances góticos são idênticas em todos os autores. A narração da história dessa entidade malfazeja oferece ao leitor a oportunidade de se ausentar momentaneamente de um mundo intensamente regrado, monetário e belicoso, expondo o conflito do homem consigo próprio e com a miséria humana. Depois do lançamento do seu livro, Laura decidiu abandonar a atividade literária. Uma decisão equivocada para quem almejava a felicidade. Gustavo ficou preocupado com essa ideia estouvada. Havia mais do que palavras envolvidas nessa atitude. Havia sentimentos. Dessa vez recorreu a outro amigo, um psicanalista. A princípio, Laura mostrou-se relutante em se submeter ao tratamento, mas depois de alguns dias de reflexão decidiu aceitar a sugestão do marido. Talvez a ajudasse, talvez não. O resultado dependeria da sua disposição de ânimo.

Se o prazer e o sofrimento são os polos da sensibilidade humana, uma relação de proporcionalidade entre as motivações de ambos é indispensável à manutenção do equilíbrio necessário à convivência harmoniosa do ser humano com o meio social. No entanto, quando os castigos suplantam as recompensas, a dor moral recalca no coração humano os sentimentos elevados, abrindo nele uma porta para a entrada dos sentimentos trevosos, estas águas poluídas que contaminam o ambiente mental. Por outro lado, a resignação sustenta o edifício dos valores morais em ruínas, ensejando a possibilidade da sublimação, que transforma as tendências agressivas em atividades artísticas. Consequentemente ocorre o abandono dos ímpetos hostis, seguido da busca de novos horizontes para a realização pessoal. Laura passou por esse processo de renovação com a assistência do psicanalista, que a orientou no sentido de canalizar as frustrações impostas pela vida para esta finalidade existencial: a arte de escrever. A vocação para a arte literária foi o favor mais generoso que Deus lhe prodigalizou para compensar a dor causada pelo espinho que os dias lentamente cravaram na sua alma. Decerto o tratamento psicanalítico foi-lhe extremamente proveitoso para que readquirisse o gosto pela produção literária, pois que o esgar de revolta desaparecera, substituído por um olhar de renunciação, sem a lente que aumentava os aspectos negativos da vida.

No dia de finados do ano em que seu livro fora publicado, Laura, como era de costume, vestiu-se de preto e foi visitar o túmulo da mãe. Mais uma vez, como acontecia todo ano, o seu mundo desabou. Todos os momentos que vivera com ela no limiar da vida ressuscitavam quando a saudade relampejava nas noites de céu fechado do pensamento. Por ressentidos minutos, imaginou o rosto meigo e o sorriso largo de Mama, que era como a chamava. Juntou com cuidado os pedaços do seu coração, ergueu o olhar e, defronte do mármore negro da sepultura, desabafou em pensamento: “Mãe, quando findará a noite da minha provação? Preciso de luz!”. Também em pensamento ouviu a resposta. Suspirou aliviada. Aquele cemitério era conhecido como Bosque das Falenas. A escolha do nome deveu-se ao fato de que, depois do pôr do sol, as falenas, estas borboletas noturnas, eram abundantes naquela região localizada numa zona rural. Naquele lugar, a tristeza dos visitantes contrastava com o céu risonho. Era uma manhã de céu azul bordado com alvas nuvens. O vento soprava suavemente, acariciando com o seu frescor matinal os cabelos castanhos e compridos de Laura. Era ameno o clima naquele dia de finados. Laura enxugou as lágrimas que a sua alma contristada derramara no seu delicado rosto, despediu-se da mãe fazendo o sinal da cruz e foi embora com a alma ainda molhada pelo temporal de recordações que desceu sobre a relva do seu coração. Todos transitórios, os sofrimentos físicos e morais são meios de evolução, desgraças que atingem somente o homem mortal na vida mundana. O homem espiritual é muito mais que isso, é divino.

Passados onze dias, numa tranquila manhã de céu aberto, Laura foi internada às pressas, vítima da mesma doença que lhe tirou a filha. O hospital ficava próximo a uma igreja. Deu entrada no setor de emergência ainda consciente, ouvindo o badalar do sino. No período vespertino, nuvens de chuva encobriram o céu da cidade, marcando o epílogo do romance da sua vida, que se desenrolou ao longo de seis meses em estado de coma profundo, entrando em óbito numa sexta-feira, quando o relógio da igreja marcava meia-noite. A paisagem no entorno do hospital exibia árvores de folhas amareladas, um símbolo do outono. O corpo de Laura foi sepultado no Bosque das Falenas, acompanhado de um exemplar do seu livro.

No dia seguinte, ainda com a alma quebrantada, Gustavo despertou ouvindo o gorjeio das aves encarapitadas nas ramagens das árvores encopadas que circundavam a sua casa. As nuvens brancas estampadas no manto azulado eram a promessa de um lindo dia. Tudo era novo, porque cada dia é um novo início. Nesse dia, com a atenção focada em si mesmo, percebeu que soprava na intimidade do seu pensamento um ar temperado de resignação. Não havia mais nada a fazer por Laura, mas muito a planejar para os dias que ainda nasceriam na sua vida. Na pintura que ficou emoldurada na memória, a imagem de Laura não se desbotaria com a passagem do tempo. Pela experiência acumulada ao longo dos anos, Gustavo sabia que as pessoas vulgares perdem-se na lembrança, mas estava convencido de que as pessoas especiais, como Laura, não morrem jamais.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 15/05/2013
Reeditado em 02/08/2017
Código do texto: T4292652
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