O armário
 
 
O armário do canto do quarto guardava muitas coisas.
Quando criança eu costumava ficar na cama, enrolada nas cobertas, olhando suas portas negras à espera de que alguma criatura horrenda saísse e me assustasse.
Agora, já adulta, pouca coisa mudou.
Ainda fico no escuro a olhar as grandes portas negras e entalhadas. Elas me lembram olhos devoradores à espreita de almas vazias. Nestes momentos, busco em minha memória qualquer coisa que contradiga a aridez do meu espírito e assim me poupe a vida.
Às vezes consigo, em outras vejo os grandes olhos negros sorrindo sadicamente à espera que eu sucumba.
Foi assim na noite passada. A cama me esperava no quarto silencioso.
Deslizei para baixo das cobertas e assim que coloquei a cabeça no travesseiro, o ritual começou. Primeiro vieram os pensamentos: frios, cortantes, insistentes e terríveis. Neles eu via sempre a mesma cena: as costas dadas, a palavra não dita, a negação da ajuda.
Depois vinha a mente e seus argumentos: eu deveria ter dito, deveria ter mostrado a verdade, falado qualquer coisa, ter sido mais forte.
Todas as noites, meses a fio, ano após a ano a mesma cena, os mesmos sentimentos, o mesmo pavor.
E assim, abraçada com a tormenta que invadia minha mente, eu olhei para o armário.
Silencioso e fatal.
A princípio tentei repudiar a ideia, dizer para mim mesmo que era só um móvel, um amontoado de madeira e ferro cheio de roupas velhas e mofo. Não adiantou.
Como um túmulo vertical, ele me olhava.
Abria os grandes olhos negros a mostrar para mim o quão vulnerável eu era, o quanto o cheiro do meu medo demonstrava minha fraqueza.
Em minha cabeça a cena se repetia. Via minhas próprias lágrimas de desespero a implorar que ele não fosse, que especialmente naquele momento não me abandonasse. Mas não adiantava.
Meus joelhos dobraram no chão enquanto eu sucumbia e ele, no auge da frieza me ignorava outra vez, mais uma vez, a última vez.
A ideia da morte vinha com a promessa de alívio.
E no auge do meu delírio de todas as noites lutei com as cenas. Voltei em um ímpeto para o quarto escuro, para os braços do algoz em forma de portas e olhos famintos que espreitava meus pensamentos.
Queria fugir, correr para longe daquela criatura densa e terrível que me escravizava. Gritar a plenos pulmões que aquele armário infernal não tinha poder sobre mim, que eu podia sim me levantar e seguir a vida, mas os olhos dele escarneciam de mim. E eu, caída, soluçava um pedido de compreensão ou de piedade; qualquer coisa para me ajudar a sair das garras da doença que me consumia.
Ele, assim como o armário, escarneciam de mim. Eu via, ainda que com os olhos turvos da insanidade, o prazer e a fúria desdenhosa com que me olhavam.
Como fiquei imóvel no chão naquele dia, ficava também na cama a oferecer sem qualquer luta minha alma para o armário maldito.
Seus olhos negros agora me tocavam. Das suas portas, um hálito fétido e pegajoso envolvia meu corpo e invadia minha mente.
Ele me queria, constatei. De alguma forma eu tinha importância!
De forma tortuosa ainda que horrenda, eu servia.
Mesmo que fosse para satisfazer seu desejo terrível, ele me queria.
E assim, vislumbrando um novo destino, onde de alguma forma eu tinha valor, pensei em desistir de lutar e me render ao escuro abraço mortal.
Entrar pelas portas daquele caminho sem volta e, uma vez nas trevas que engoliam tudo, descansar dos pensamentos que me atormentavam noite após noite.
Os olhos famintos agora me olhavam com certa candura. Uma espécie de sedução que antecede o gozo do roubo da alma.
Eu me deixava levar pelos dedos frios que me agarravam. Nunca mais a dor, nunca mais as lembranças, nunca mais a cena de morrer um pouco todos os dias.
Flutuando em um mundo com promessas de paz e escuridão, escorreguei para o túnel que me acolhia por fim.
O armário, vitorioso, me recebeu de braços, boca e olhos abertos e antes que eu desse o adeus para a vida, pensei que podia haver opção.
O monstro gritou alucinado.
Por instinto, lutei e fugi para longe do abraço macabro.
Sim, havia opção. Na mente vi a cena mais uma vez: a chuva fina, as lágrimas quentes, alguém que ia para nunca mais voltar.
O concreto frio serviu de apoio e no último instante, levantei.
O armário rugia. Seus olhos malignos me devoravam.
Fechei meus olhos e tentei ver outras cenas. Tempestades, raios, trovões, fuga, mas era um novo pensamento!
Sim! Havia opção mesmo em meio à dor.
Saí da cama em um ímpeto. Fechei à chave as portas malditas e impedi assim que o monstro tornasse a abri-las.
Do quarto levei apenas o livro inacabado.
Dormi no chão do banheiro ouvindo a chuva lá fora.
Hoje foi o grande dia, o armário queimou no quintal enquanto eu pensava sobre quanto realmente vale alguém que deixa uma pessoa para morrer na chuva.
Quando a última chama apagou, me servi de mais vinho e comecei uma outra vida.
Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 28/07/2014
Reeditado em 28/07/2014
Código do texto: T4900202
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