Sim....
Sou uma destas pessoas.
Embora muitos não as chamem assim: PESSOAS.
Nosso mundo é totalmente indiferente à eles, as chamadas pessoas do bem. Talvez porque a vida nos marcou de forma intensa, com ferro e fogo, impregnando em nós uma amargura atroz e feroz, na qual sucumbimos um pouco mais profundamente à cada noite. Ou à cada dia, visto que sob o sol, temos de encarar quem realmente somos. Espectros do que poderíamos ter sido, se tivéssemos tido a chance de viver os nossos sonhos. 
.... Mas os " ses" da vida não nos cabem. Somos o que somos, e não há nada que possamos fazer que estancará esta sangria em nossas almas perdidas e lavadas de alegrias e festejos.
Nesta noite, os bares estão apilhados desta gente tristonha, apesar de gargalharem alto e sem quaisquer pudores ou inibições. Eu quase nunca sorrio. Não me dou ao luxo de fingir. Não mais. Cansei-me dos subterfúgios. De mostrar aos outros o que não sou.
Trago comigo meu único amigo: O pássaro negro que quieto me segue onde quer que eu vá.No seio,sob o espartilho alguns vinténs, que hoje poderá me comprar algumas doses de  Whisky com absinto, o que me entorpecerá por algumas horas de dor.Analgesia á qual me entrego para prosseguir nas palavras desta carta que hora vos escrevo.
Homens sujos me tocam os braços. Dizem-me palavras chulas. Os afasto grosseiramente. Não preciso deles, não careço do amor fajuto e descarado que oferecem, mais a eles que a qualquer uma de nós. Apesar da desgraça, ou talvez, devido ao infortúnio não anseio por nenhum toque. Todos que tocaram meu corpo, fugiram de minh'alma. Jamais beijaram meu ser. Meu coração nunca acelerou diante do olhar de homem algum. Dizer-se-à de mim frígida? talvez o diga! Mas saiba que o muro de gelo que construí foi forjado à duros golpes de machado e sob o cimento da indiferença e do desdém. Então não há nada que possa dizer que causará em mim chaga maior do que a própria realidade já causou. Então poupe tua saliva e cala tua voz.
Não busco companhia. O corvo me basta. Seus olhos prescrutam os meus silêncios, sua penugem negra e macia roçam meus cabelos. De quando em vez bica meu ombro, delicadamente e grasna baixo aos meus ouvidos. É o íntimo amigo das horas sombrias, de certa forma somos iguais. Seres solitários da escuridão, desprovidos do alimento que sacia a alegria. Nos banqueteamos da carniça de nossa própria espécie. A dor que alucina e ensandece. A devoramos para não sermos consumidos. E a vomitamos. Vezes incontáveis. Neste turbilhão tempestuoso que é o nosso teimar pisar por sobre a terra.
Perdoem-me, mais uma vez fugi à minha carta, ao recado que quero vos entregar.
Sentada aqui, nesta mesa ao canto, vejo muitos rostos conhecidos, mas um me é estranho. Percebo-o porque se destaca dos outros. Tem o cenho franzido, um semblante não triste. Não, creio que vai além da melancolia o que traz nas feições do rosto. É como um alheamento à tudo. Um desapegar do mundo. Um vazio tão profundo que mesmo eu, que não temo nem o demônio sinto um calafrio na espinha ao contempla-lo. Sua boca é um risco duro. Talvez nem fale. Eu poderia jurar que ele é mudo, surdo e cego. Nada desvia a sua atenção do copo de Whisky e absinto que tem diante de si. Coincidentemente tomamos a mesma bebida. Será que o misterioso cavalheiro também precisa anestesiar alguma memória? esquecer sua história num drink amargo, ainda que insuficiente? O veneno que tomamos nunca mente. De certa forma ele nos delata. Junto ao líquido, ingerimos o que precisamos para adormecer nossas misérias.
O corvo grasna alto no meu ombro. Tenho um sobressalto! Será que esta ave medonha pressentiu um sentimento brotar dentro de mim? impossível!_ E que sentimento seria este que não curiosidade ante ao Lorde que diante de mim se apresenta?Estático... Insondável e infeliz.
Não me privo da audácia de ir até ele. Porque então, o faria? Ele não está aqui, entre nós? E se aqui está é porque de alguma forma, em algum lugar do seu íntimo é um de nós. Pego o meu copo e seguramente me aproximo dele. Posto-me à sua frente.É quando percebo que ele enxerga, pois ergue os olhos para mim. Vejo-o. Como o vejo! Seus olhos castanhos são tão profundos quanto o oceano que não conheci. Há neles uma escuridão do caos. Guarda os segredos dos anjos caídos. Lindos e sofridos.
Em segundos, que parecem-me eternidades, prescruto seu íntimo belo, apesar de sombrio. Pela primeira vez me senti vista pelos olhos de um " igual".
Quero falar, mas minha voz cala, sufocada na garganta. O corvo grasna mais uma vez, despertando-me do ambiente onírico para o qual minha mente me transportou, em conjecturas a cerca do enigmático senhor. Enfim, busco coragem é lhe ofereço um drink.
Meu Deus onipotente! Que mulher poderia tomar tal atitude? 
Para minha surpresa ele diz que aceita.
... E que homem aceitaria que uma mulher lhe pagasse a bebida?
Talvez por tal fato, eu acabei de permitir que um homem cruzasse os portais de minha alma. Tomamos uma dose dupla da bebida.
Foi quando ouvi sua voz. Tão indiferente e vazia quanto tudo que nele havia.
_ Como a Srta se chama?
Senhorita? 
À quanto tempo não me chamam assim. Não me veem assim. Não me sinto assim... Juro, neste momento poderia até ter me sentido alguém, se a voz dele denotasse qualquer interesse. Tive a impressão que perguntou-me o nome, meramente por educação. Ou gratidão, à quem naquela altura da madrugada, quando a chuva fina caía sobre a cidade imunda e vadia, enlameando mais ainda as ruas; já lhe pagara dois drinks.
__ Anna Corvo. Respondi-lhe suavemente. E não seria difícil saber o porque da alcunha, visto que o corvo grasnava sem parar, assustado, por certo pela minha interação com o estranho.
__E qual o nome do Sr, se não for audácia em demasia, perguntar.
Olhou-me fixamente o rosto.
Passeou por minha boca vermelha, quase quis esfrega-la com as costas das mãos naquele instante. Envergonhei-me do batom carmim que estava usando e dos olhos demasiado rebuscados de creon. Uma prostituta. Supus que ele pensara. Com a voz mais aveludada, e também menos fria, ( como me pareceu) respondeu à minha indagação:
__ Eu me chamo Edgar Allan Poe. É um prazer conhece-la, senhorita.
O corvo se assustou!
Grasnou tão alto que toda a taberna se voltou em minha direção.
Bateu asas, fugiu pelas portas do estabelecimento.

Anna Corvo 
(Heterônimo de Elisa Salles)

CONTINUA.
Elisa Salles ( Elisa Flor)
Enviado por Elisa Salles ( Elisa Flor) em 22/01/2018
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