GALINHA AO MOLHO

Estava anoitecendo à beira do rio Tietê no interior de São Paulo. Cercado de velhos casebres o rio crescia a cada quilômetro, quando ao passar em frente a um desses casebres, todo de madeira, tábuas velhas e largas frestas onde dava pra ver a escuridão que reinava dentro desse casebre, deparei-me com uma criança contando por volta de oito a nove anos. Vestia um pequeno casaco de lã e bermuda na mesma cor amarelo com um tom amarronzado, sapatinhos pretos e meias brancas a altura das canelas. Ao me ver o menino disse - Moço, por favor, a porta bateu e eu não consigo entrar em casa! - Fiquei olhando assustado a figura branca do menino segurando uma velha bola de futebol em suas pequenas mãozinhas. Pedi que ele entrasse e segui meu caminho sem olhar pra trás. Ao chegar no rancho onde o pessoal da pescaria me aguardava disse a eles o que se passara comigo. Assustados disseram-me que aquele casebre era assombrado, que tal criança não existia, que era um fantasma de um menino e que toda vez que ele entrava na casa saia mais velho em seguida. Não podia acreditar no que estava ouvindo, pois foi tão real a visão que minhas pernas amoleceram...

Decidi então retornar à casa velha e convencer o menino a permanecer em sua casa. Para minha surpresa encontrei-o parado outra vez à porta, agora com uns dez ou onze anos presumivelmente. falei com ele, pedi que entrasse em seu lar, e , aproveitando uma lufada de vento repentino, entrei quando a porta se abriu. Não podia acreditar naquilo que meus olhos viam. No centro da sala transformada em quarto , deitada em uma cama grande de casal, estava uma mulher de uns trinta e poucos anos. Só dava pra ver mais ou menos o rosto mediante um espelho velho de moldura branca colocado ao lado da cama. Mostrava exaustão, envolta em um lençol branco e um cobertor vermelho. Seus cabelos eram longos, negros e ondulados, se esparramavam por cima do lençol e do cobertor. Ao entrar fui repreendido por tal visão - Quem está aí ? - Respondi que só vinha trazer seu filho de volta. - Ele não pode ficar aqui! - disse-me mais uma vez a voz infeliz. Arrepiei-me dos pés à cabeça mas percebi que aquela alma sofria muito então resolvi ficar e ajudá-la. - O que aconteceu com você ? - perguntei. Em quê posso ajudá-la ? - Insisti -

- Não pode me ajudar em nada! Vá embora! respondeu-me com tom de desespero.

Enquanto ia saindo deparei-me com três figuras soturnas, dois vestiam preto e um terceiro vestia um terno cor de creme e um chapéu côco na mesma cor. Era alto e magro, estava vermelho de raiva com minha presença ali. veio todo arrogante em minha direção, apontando-me o dedo e ordenando que eu me retirasse, dizendo que o que aconteceu naquela casa não era problema meu. resolvi enfrentá-lo, perguntando-lhe sobre o que havia acontecido ali e o que eles tinha a ver com isso. Ao invés de me responder ele acusava-me de remexer o passado dizendo que até mesmo falar com o bispo ele tinha ido.

- Como assim falar com o bispo ?! - perguntei - O que foi falar com o bispo ?

- Foi sobre a criança ! - respondeu-me colérico - E não é bom você colocar essa criança pra dentro da casa ! tornou-me a iracunda visão.

Meu coração começou a bater mais forte, estava começando a entender toda a trama. A tal mulher havia sido acusada injustamente de bruxaria. Por estar muito doente queriam que ela confessasse e como ela não podia confessar algo que não existia tiraram-lhe o filho que a ajudava deixando-a morrer solitária e doente naquele casebre. Compreendi que todos ali já haviam morrido, tanto a mulher quanto seu filho e seus malfeitores, mas o que a mulher queria era justiça, que o mundo soubesse de sua inocência! Então, indignado, voltei-me para o homem de chapéu de côco e bradei - Agora eu sei o que aconteceu aqui! pois saibam vocês que não vou deixar essa história quieta! Irei denunciá-los ! E vocês sabem como isso vai acabar ?!

- COM UMA GALINHA AO MOLHO !

Assustei-me com a resposta, partira do interior do casebre, da infeliz mulher jogada na cama. Só aí pude ver seu rosto completamente, era belo,jovem, olhos negros enormes e as maçãs do rosto salientes e pálidas. Estava feliz, sorria com seus brancos dentes, sorria porque finalmente sua voz pôde ser ouvida, seu último almoço com seu filho antes de ser arrancado dela, uma galinha ao molho. Estava vingada, o mundo saberia agora através deste conto o quanto sofrera por sua inocência. Estava feliz, acabara a maldição...

Perguntei se seu filho poderia entrar e ficar com ela pra sempre. Ela disse que sim, a maldição estava quebrada. Ela só queria que alguém soubesse de sua inocência, sua história e partilhou isso comigo através de um sonho...

Ao acordar senti a necessidade de transcrever este sonho em forma de conto, pois acordei lembrando exatamente de cada palavra e senti que devia isso à essa alma e outras que sofreram mortes injustas no passado. para que a alma dessa mãe possa finalmente descansar com seu filho. E tudo acaba assim neste mundo, como ela disse:

- COM UMA GALINHA AO MOLHO !

Gilberto de Carvalho
Enviado por Gilberto de Carvalho em 11/03/2021
Código do texto: T7204374
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