A cabeleira

De onde eu morava, conseguia ver parte do cemitério “Saudades Eternas”.

Numa bela manhã de um dia qualquer da minha vida vi um fato que me marcou, primeiro pela absoluta repugnância, depois você decide caro leitor pois eu mesma não quero entender!

Entre um sem número de cruzes e catacumbas, uma cena me prendeu a atenção. Dois coveiros abriam uma sepultura que pelo estado me parecia muito antiga. Eu achava que coveiros só tinham uma única função nessa vida que era o de abrir covas, mas naquele dia eu vi que sua profissão têm atribuições que poucos de nós teríamos coragem de enfrentar e os mesmos fazem com extrema naturalidade.

Por instantes os dois coveiros de uniformes azulados da prefeitura municipal desapareceram por detrás do monte de terra socada. Não demorou para soerguerem um caixão semi-apodrecido, que ainda guardava parte da cor branca original, os trincos que fechavam o esquife cederam facilmente ao toque de pequenos golpes de marreta. Era um espetáculo horroroso de se ver, ao mesmo tempo que queria sair dali uma curiosidade malsã me detinha! Quem estava ali enterrado? Era homem, era mulher, jovem? Quem terá sido? Do que morrera? Quando morrera?

A indagação maior martelava a minha mente; como coveiros se acostumam a presenciar espetáculo tão deprimente? Era comum vê-los por exemplo almoçando, com o traseiro em cima de uma lápide, como se tivessem na sua cadeira preferida de domingo.

Era visível que os ossos já haviam se descolado do antigo esqueleto e eles iam retirando com vagar um a um, foi então que uma das perguntas que eu sem querer formulara no início daquela bizarrice me foi forçosamente respondida; com a ajuda de um pedaço de madeira retiraram uma imensa manta de cabeleira negra que gotejava dependurada, era algo horrendo, francamente repulsivo, mas os meus olhos não se desviavam, absortos. Vi que iam mecanicamente depositando tudo em uma caixa adornada de madeira (ossário viria saber depois), de repente entraram em uma espécie de excitação, cada um falava ao mesmo tempo, depois instantaneamente abaixavam o tom de voz com receios de serem surpreendidos em sua felicidade, foi então que eu percebi o motivo de tamanho frêmito, haviam encontrado um par de brincos, que mesmo longe, faiscavam, reluzentes, como não perceberam que eu os assistia de longe, tomou-os para si.

Voltei pra minha casa com a alma petrificada, entrei no meu quarto e tentei olhar para o espelho da cômoda, não conseguia, abri a terceira gaveta, um imenso álbum de fotografias, comecei a vê-los de trás pra frente, nele meus pais, meus irmãos, vi que o álbum fora acrescido de muito mais fotos, viagens, passeios, tudo estava registrado mas eu não estava mais nelas, como se eu não fosse mais querida por eles e isso me deu um profundo desgosto. "Como morrer é ruim", pensei, somos totalmente esquecidos! Queria continuar vendo as fotos mas desisti.

Retornei para onde estava a fim de terminar de ver o espetáculo dos coveiros mas eles já haviam ido embora.

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 21/05/2021
Reeditado em 24/05/2021
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