A palidez da morte/ Trauma de infância

Eu sei, ninguém gosta de falar desse assunto! Sempre muito difícil de ser tratado, principalmente com as crianças. E devido toda essa dificuldade, os adultos acabam criando barreiras entre o tal assunto e os pequenos, isso causa um distanciamento imenso entre o aceitar e o compreender, independentemente da idade. Falo da perda de alguém, na verdade da morte, como podem ver, não me sinto confortável para escrever a palavra.

Meu primeiro entendimento com este fato, eu deveria ter entre seis e sete anos. Foi durante a aula que chegou a notícia de uma perda numa família da cidade. Tratava-se de um recém-nascido. Pela tradição do lugar, a notícia era divulgada em forma de convite para que todos acompanhassem o cortejo até o cemitério. Por este motivo, éramos todos convidados, como se tratava de um anjinho, como era chamado os recém-nascidos mortos, as crianças eram praticamente convocadas para o sinistro evento. Lembro que era um dia frio, estávamos no inverno, caia uma garoa fina que ia orvalhando as flores em volta do pequeno corpo e a sua face branca. Quando me deparei com a cena, me desesperei, me causou uma dor profunda vê-lo ali estendido tomando aquela chuva fina no rosto. Comecei a chorar e a pedir que lhe cobrissem com uma manta quentinha. Me afastaram dali, dizendo que não havia nenhum problema, pois já estava morto. Bom, não me lembro depois daí, se segui no cortejo ou voltei para a escola ou para casa, só sei que a imagem do rostinho orvalhado naquele inverno, nunca mais foi esquecido. Foi o meu primeiro conceito de morte. “Quando morto, não sente mais nada”.

Depois, numa outra ocasião, agora já entrando para a adolescência, havia um homem muito doente na cidade. Diziam que era um mal de morte, tuberculose, se não me falha a memória. Tratava-se de um homem jovem, mas isso não lhe favorecia em nada quando o mal era de morte. Esse fato comovia toda a cidade. Em todas as esquinas, o assunto era o mesmo: esperar a tal hora. Sempre atenta aos comentários dos adultos, que faziam questão de mudar de assunto quando eu chegava mais perto, acompanhava aquele moribundo de longe. Até que tocou o sino da igreja anunciando que a “sua hora chegou”. Foi de grande comoção para toda a cidade. Era um moço de família importante, estudado na capital, casado recentemente, enfim, uma perda irreparável. Sob recomendações, teria que ficar em casa, em respeito ao luto não teria aulas. Os adultos seguiram para o velório. Era meio de tarde, fazia calor, uma época de muitas frutas, acho que estávamos no outono. Depois de chupar umas duas ou três mangas, resolvi desobedecer a regra de que velório de adulto não era lugar para crianças. Sai escondida para ver tudo de perto, afinal foram meses ouvindo sobre aquele acontecimento que estava por vir. Cheguei na casa, sim na casa, pois na época todos os velórios eram realizados em casa, regado a muitos comes e bebes, fui adentrando entre as pessoas, que estavam tão comovidas, que nem notaram a minha presença. Cheguei bem perto do caixão, queria olhar o morto. Me deparei com uma cena assustadora. Um rosto pálido, branco, cheio de camachos de algodão enfiados nas narinas e nos ouvidos. Sai dali correndo, indo parar em casa, achando que fiz a pior coisa da minha vida. A partir desse dia, o mingau de leite que costumava comer no café da manhã, nunca mais desceu na garganta, não sei que tipo de associação fiz entre o mingau e a cena do morto, acho que me despertou a sensação de “nojo” pela primeira vez. Seguindo meu entendimento, o morto também não precisaria mais do nariz e nem dos ouvidos.

Mas esse entendimento não parou aí. Um outro fato curioso aconteceu. Já estava uma mocinha feita, como dizia a minha querida vozinha. Talvez não com o mesmo entendimento das mocinhas de hoje, pois acredito que a televisão e as demais mídias nos faziam muita falta, só tínhamos em mãos os livros das bibliotecas, com assuntos limitados, e o que os pais e avós nos faziam acreditar, então a busca por entendimento do mundo dos adultos era constante. E este era assunto tão proibido para criança quanto o sexo. Por isso estávamos sempre infringindo as regras para descobrir os porões proibidos. Era vizinho da minha casa. Um moço que bebia muito. Todo os chamava de pinguço. Filho único. Foi uma notícia de grande impacto. Estava bem em casa, comeu algo, passou mal, foi socorrido e voltou morto para casa. Ninguém acreditava no acontecido. Os gritos de desespero da mãe davam para se ouvir a mais de um quilometro. Passado o impacto, o velório foi organizado. Todos da cidade se dirigiram para prestar condolências. Óbvio que eu também tratei logo de dar aquela escapada para ver de perto toda aquela movimentação. Mais uma vez, adentrei naquele evento de adulto, novamente a comoção do momento me fez passar despercebida, quando dei por mim já estava na frente do caixão, de cara com um rosto totalmente inchado, têmporas que me pareciam suadas e os tais camachos de algodão enfiados nos orifícios. Comecei logo a questionar por que ele estava suando? Seria mesmo suor? Será se realmente estava morto? Morto sua? Uma outra característica dos adultos em relação as crianças, é que ninguém acredita no que ela fala. Bom, não preciso nem dizer como voltei para casa. A sensação de que enterraram aquele homem ainda vivo nunca mais foi esquecida. E foi a partir daí que decidi que não iria mais atras de tais eventos macabros.

Bom, como é um assunto natural para todos os viventes, seja branco, preto, rico ou pobre, aconteceu também na família. A primeira perda na família que eu me lembro foi uma tia. Uma mãe cheia de filhos pequenos, que morreu no parto. Só me lembro que foi bem difícil para todos. Não tenho nenhuma lembrança do seu rosto morto, acredito que não cheguei perto, não sei se por escolha própria, ou por proibição.

Aí teve outra tia. Esta morava na cidade grande. Já vivia doente por muito tempo. Sofria de um câncer. Sempre ouvia em casa os comentários sobre seu sofrimento. Ouvia também a fatídica fala: “está esperando a hora”, pois na época o câncer era dificilmente curado. Graças a Deus e a ciência, esta história mudou. Minha tia veio a morrer depois de uns três anos lutando contra a doença. Também não vi seu rosto morto.

Perdi também meu avô. Deste não tenho muito o que relatar, provavelmente, era muito nova quando se foi. Mas tenho boas lembranças. Lembro bem do seu corpo gordo, negro e bem "reclamão" , prostrado numa cadeira de balanço. Recordo também que a partir de sua morte, minha vozinha passou a usar roupas pretas e nunca mais a vi com outro tom.

Com o passar dos anos ela também se foi. Uma doença grave o atingiu aos seus oitenta anos. Uma senhorinha de corpo esbelto, cabelos longos, gostava de fazer rendas e cuidar de seu pomar no fundo de quintal. Cultivava lima da persa, mangas, bananas, laranjas e hortaliças. Provavelmente foi a parte da minha infância mais bonita. Conviver com a minha avó me encaminhou para a vida com o melhor de todos os aprendizados. Devido a gravidade da doença foi encaminhada para a cidade grande, vindo a falecer por lá. Hoje tenho a sua linda imagem de rosto fino, nariz bem afilhadinho e um corpo exibindo um look comum da época: saia longa e blusa de manga três quartos, sempre em cores neutras.

Depois foi um tio muito querido. Sempre disposto a ajudar na educação de todos os sobrinhos. Infelizmente fumava muito. Um fumante compulsivo. Acompanhei mais de perto seus dias doente. Mas, quando veio a falecer, eu não estava por perto, morava em outra cidade e optei por não ir. Guardo uma imagem bonita desse meu tio. O vejo sentado num banquinho debaixo das bananeiras, com seu cigarro entre os dedos e dando banana para seu macaquinho de estimação, o Chico. Um rosto sempre corado e questionador.

Bom, vocês devem estar se perguntando: afinal, por que ela sentiu vontade de escrever sobre tudo isso? Podem não concordarem comigo. Não gosto da cerimônia da morte. Acho uma coisa muito pesada para todos que ficam. Não consigo entender ou aceitar, sei lá, o porquê da exposição de um corpo sem vida causando dores e traumas para os amigos e familiares. Sei que tudo é organizado baseado no amor e no respeito pelo ente querido, talvez os meus traumas da infância não me deixam ver isso como um acontecimento normal. Então a questão é: que imagem você quer guardar?

Sei que existem pessoas muito evoluídas, veem e encaram tal acontecimento com muita destreza e discernimento. Este não o é o meu caso. Não sou nada evoluída no que diz respeito a este assunto. Não quero aqui questionar o que acontece no pós morte, este é outro ponto que prefiro encarar como minha vozinha dizia: se fizer o bem em vida, vai para um lugar bem bonito, cheio de flores, anjinhos e bem tranquilo, se fizer o mal, passa a habitar um lugar feio, cheio de gente feia, quente e muito triste. Então, vamos fazer o bem sem olhar a quem.

Mas esse é um problema que eu terei que superar, ou não. Voltando no porquê de falar sobre este assunto, este está relacionado exatamente com o fato de qual a lembrança quero guardar da pessoa que se foi. Provavelmente, não serei compreendida, sempre que possível, fujo destas cerimônias. Estou sempre pedindo a Deus para me auxiliar e me ajudar a lidar com os acontecimentos inevitáveis. Hoje eu tenho algumas estrelas especiais no céu, que com certeza me guiam enquanto estou por aqui. E dessas estrelas tenho a lembrança dos seus rostos sadios, sorrindo e vivos. E é assim que quero lembrar para sempre do meu avô, minha vozinha, do meu pai, da minha mãezinha e do meu irmão mais velho, dos quais me despedi quando ainda vivos, sem a palidez da morte. Se estou errada? Não sei. A única coisa que tenho certeza é que fui uma garotinha traumatizada numa época que não se falava em psicólogo.

O futuro? A Deus pertence.