A tocha invertida

A lua cheia brilhava num céu sem nuvens, quando Cillian Baxter escalou uma árvore ao lado do muro de pedra que circundava o cemitério, e pulou para dentro. Caiu com um ruído surdo sobre a terra fofa ao lado de uma sepultura, e ficou imóvel alguns instantes, agachado e em silêncio, tentando perceber se sua entrada inortodoxa despertara alguma atenção indesejada. Finalmente, chegou à conclusão de que, ao menos no que tangia aos vivos, sua presença ali permanecia desapercebida. Tocou a testa e murmurou, olhos fechados:

- A sua licença, Guardião, para entrar nos seus domínios.

Retirou então um pedaço de fumo de rolo do bolso do casaco, o qual depositou reverentemente junto ao muro do cemitério.

Finalmente, ergueu-se e olhou ao redor, tentando localizar-se. Um túmulo coroado por uma pirâmide de ângulos agudos e cercado de vegetação, cerca de 100 metros distante dele, marcava aproximadamente o ponto central do cemitério. O seu objetivo ficava mais para os fundos do terreno, na parte dita "nova" do campo santo, embora isto significasse ter não menos de um século de antiguidade. Fora quando os preços de sepultamento naquela necrópole haviam caído o suficiente para que membros da classe média, como um antepassado de Cillian, Kasper Theodore Baxter, pudessem comprar o repouso permanente para seus restos mortais.

Cillian caminhou cuidadosamente por entre os túmulos banhados pelo luar, alguns decadentes e carcomidos, sufocados pela hera, outros imponentes e resistindo ao tempo em granito e mármore, com carpideiras esculpidas apoiadas em cruzes ou urnas funerárias. Alguns ostentavam as mesmas urnas, mas cobertas por uma mortalha, ou guirlandas de pedra, ou colunas quebradas, indicativo de vida breve. Sobre a sepultura de Kasper Theodore, havia a escultura de uma tocha de ponta-cabeça, simbolizando a crença do seu possuidor na vida eterna.

- Estimado antepassado, - cumprimentou-o Cillian Baxter, ajoelhando-se diante do túmulo e murmurando - venho aqui nesta noite pedir-lhe um grande favor: que os passos de meu adversário, Josiah Perry, sejam embaralhados, e o conduzam para bem longe de Lyra Brooks, a qual desejo desposar.

Uma coruja piou numa árvore próxima e Cillian aguardou, em expectativa. Finalmente, uma voz distante, que parecia vir das profundezas da terra, manifestou-se:

- Diga-me: este Josiah Perry é um bom cristão? Seja sincero.

- Sendo absolutamente sincero, nunca ouvi dizer que não o fosse - admitiu Cillian. - Mas não creio que ele a ame mais do que eu.

- Esse é um critério bastante subjetivo, prezado descendente - ponderou a voz. - E você, considera-se um bom cristão?

- Tenho procurado cumprir os mandamentos - replicou prontamente Cillian.

- Mas se é mesmo um bom cristão, o que está fazendo num cemitério à meia-noite? - Questionou a voz com uma ponta de ironia.

- Olha, não quero ser desrespeitoso, estimado antepassado, mas no seu túmulo não há sequer uma cruz, mas uma tocha invertida. Achei que pudesse compreender meus sentimentos e estivesse disposto a me ajudar, sem juízo de valor.

- Ah, a tocha invertida - resmungou a voz. - Bom, você tem um ponto; mas não imagine que vou ajudá-lo em troca de nada.

- E o que deseja em troca, estimado antepassado? - Indagou ansioso Cillian.

- Nada de muito complicado - redarguiu a voz. - Aqui é bastante solitário, então terá que me prometer que virá pelo menos algumas noites por ano conversar comigo. E faço questão de conhecer sua esposa, caso este casamento realmente se torne realidade.

Cillian titubeou.

- Mas... e se ela achar a ideia muito bizarra e não quiser vir? - Indagou.

- Se ela realmente ama você, acabará vindo - afirmou a voz. - Caso contrário, melhor deixar que se case com Josiah Perry.

E foi só então que Cillian compreendeu que o falecido não iria mover uma palha para ajudá-lo; mas, se o conselho dado se revelasse útil, iria dever o favor, de qualquer forma. Ergueu os olhos para a lua, que não lhe deu nenhuma resposta.

Numa árvore próxima, uma coruja piou duas vezes.

- [22-08-2022]