Entre Almas e Demônios

Entre Almas e Demônios

“Eu não preciso de terapia, quem precisa são meus demônios”.

Foi a primeira coisa da qual pensei em responder para doutora Victoria Sombria ao me receber em seu consultório psiquiátrico. Reconhecida pela abordagem peculiar, alguns diriam excêntrica. De reputação estranha, sua aura deixava seus pacientes desconfortáveis. Enquanto alguns a viam sendo dotada de uma mente brilhante, outros consideravam completamente maluca.

Por este motivo resolvi agendar consulta, buscava técnicas pouco ortodoxas, tipo hipnose profunda, regressão, ou até exorcismo. Por que não?

O consultório ficava localizado no prédio mais antigo da cidade. Flores murchas das quais pareciam chorar em desespero cobria sua fachada, envolvendo tudo numa atmosfera de abandono. Subi alguns lances de escada em espiral desgastada até o terceiro e último andar. Aparentava ser o único local habitado.

Aquela angustiante sala de espera não havia pacientes tal como nada vivo para minha recepção. Apenas poltronas antigas mais mesa empoeirada, apoiando revistas desatualizadas. Questionei se o próprio lugar não seria a manifestação de meus medos e conflitos.

Passaram menos de 3 minutos, chamaram por mim. Era ela, Dr. Sombria quem recebia com doce sorriso sutil. Possuía olhos negros que brilhavam de modo intensamente desconcertante, cabelos pretos perfeitamente lisos criava nítido contraste marcante junto da sua palidez. Fisionomia narcótica, mesclando impecável voz suave, no entanto carregada de mistério. A jovem usava um vestido vinho de tecido leve, dando certo toque de sensualidade.

Estava sendo arrastado para o desconhecido. Cheiro de tabaco e ervas incensadas misturavam-se na iluminação difusa das lâmpadas amareladas. Chão totalmente quadriculado em preto e branco refletiam em todas as cortinas, bloqueando qualquer raio de luz solar. Claustrofóbicas paredes cobertas com pinturas bizarras de formatos enigmáticos retratavam símbolos perturbadores fazendo parecer ganhar vida própria quando observados por muito tempo. Finalmente em seu escritório, onde mentes perturbadas imploram por ajuda. Porém, apesar do clima melancólico, havia um toque de esperança naquele consultório psiquiátrico.

No centro da sala um imponente relógio atraiu minha atenção. Dourado, possivelmente feito de madeira nobre, ouro e cristal. Engrenagens giravam com precisão hipnótica, criando movimento fluido demonstrando transcender o tempo.

Quase cantarolando Dra. Sombria disse:

_Seja bem-vindo. Aqui, você encontrará espaço confidencial para explorar pensamentos, sentimentos, também experiências. Estou aqui para ouvir com empatia, ajudá-lo encontrar caminhos de cura, além disso crescimento. Possivelmente trazer luz para sua escuridão.

Esta última frase foi concluída com leve, carinhosa piscadinha.

Caminhei até a solitária poltrona em frente ao relógio, curiosamente possuía mesma cor de seu vestido. Mesmo sendo extremamente confortável, notei arranhões por toda parte. Imaginei se os próprios pacientes, em seus desvaneios, teriam sido responsáveis.

Enquanto ela tomava lugar em sua mesa, prosseguiu explicando com feição serena ser um espaço confidencial. Então subitamente entendi ser capaz de falar qualquer “merda” que mesmo assim seria compreendido. Estava tranquilo.

_Sente-se, fique à vontade.... Você está bem?

_Sim, estou bem...

Respondi sem pensar

_Como é estar bem?

_A verdade é que não estou bem, lido com demônios dos quais você nem pode imaginar.

_ A razão pela qual você diz estar bem é porque ninguém liga, correto?

_E está tudo bem.

_Certo. Conte - me sobre os demônios, estão aqui agora?

Ela realmente pareceu procurar por eles.

_Doutora, são invisíveis. Habitam minha mente. Sempre me observam, percebo seus olhos vermelhos em mim.

_Ah, demônios invisíveis! Fascinante! Diga-me... Como sabe que estão lá se são invisíveis?

_ Eu posso sentir a presença deles, doutora. Deixam um rastro negativo por toda a parte. É como se dançassem pela minha cabeça todas as noites.

Mantinha-se entusiasmada em cada relato

_Incrível, de fato! São fã de música? Rock? Dizem que o diabo é o pai do rock...

Notou minha cara de desconforto, logo prosseguiu

_Você tentou conversar com eles?

_ Tentei, mas são tímidos!

_Sério?

_Estou brincando. Comunicam comigo através de mensagens subliminares em forma de energia durante o dia.

_Uau, isso é extraordinário! Você pensa possuírem algum proposito em sua vida?

_Não tenho certeza, doutora. Às vezes, sinto que causam ansiedade, pânico, mas em outros momentos, sinto medo de estarem tramando alguma coisa.

_Bem, talvez seja hora de abraçar sua relação com esses demônios. Talvez seja o escolhido para desvendar os mistérios do inferno dentro da sua cabeça!

Apesar de parecer estar falando com seriedade, brinquei.

_Você acha? Ou talvez devesse começar a estudar ocultismo para compreender melhor.

_Sim, sim! Explore todas as possibilidades! Afinal, a vida é muito mais interessante quando há demônios invisíveis e dançarinos como amigos.

Julguei tudo aquilo um absurdo.

_É só isso?

Pareceu confusa e decepcionada.

_Como assim? Podemos conversar sobre por horas. Realmente fascinante!

_Não vai me receitar algum remédio...Dizer que sou um perigo para sociedade ou algo do tipo?

_Você tem outros amigos além deles?

_ Eu não tenho amigos, sou sozinho, sempre pensei gostar disso. Admito, estar cansando.

_Então para quem exatamente você seria perigoso? Talvez, apenas para si mesmo.

Antes de poder responder, a moça pegou em sua mesa um frasco fino contendo líquido marrom e olhou para mim com carinhoso sorriso.

_ Aceita um chá?

_Chá? Qual tipo de chá você quer me dar? Perguntei meio debochado.

_Sim, bobinho. Místico, vai ajudar ver as coisas de outro jeito. Confia em mim querido. Resolvo seus problemas nesta seção! A não ser que queira me ver outras vezes!

Seguido de nova piscadinha. Pareceu ter certo toque de sensualidade.

_Não acredito nessa baboseira mágica!

_Você acredita em demônios, mas não acredita em misticismo? Um tanto quanto contraditório, não acha?

_Minha vida será resolvida pela droga de um chá? Pensei em exorcismo, isso não imaginava. Preciso de algum remédio para relaxar. Poderia receitar comprimidos para dormir ao menos?

No mínimo, procurava remédios para desligar minha mente. Neste momento, reparei seu semblante sério e imponente.

_Entendo. vamos clarear as coisas? Não gosto de químicos, precisamos reduzir danos. Acredito em teorias obscuras sobre a mente humana, penso que a verdadeira cura só poderá ser alcançada ao confrontar nossos medos mais profundos e sombrios. Esta é uma poderosa bebida xamânica, carrega propriedades medicinais bem como espirituais, muito usada em rituais indígenas para alcançar estados de consciência alterados. O intuito é fazer você buscar respostas para questões internas. Enfim, você encontrará todas as explicações. Agora ficou claro?

Apenas balancei a cabeça positivamente. Significava alucinógeno, já gostei.

Tranquila, a Dra. tirou da gaveta uma folha de papel junto duma caneta.

_Você ficará bem, confia em mim lindinho! Assine esse termo de responsabilidade bem “padrãozinho”.

_Porque isso, Doutora?

_Vou cuidar muito bem de você.

Assinei, fiquei curioso por tudo. De fato, parecia mais louca do que eu, no entanto, uma louca consciente de suas ações.

Confesso ficar apaixonado pelo jeito, habilidade, olhar expressivo, ou seria aquela beleza exótica? Com certeza as piscadinhas...

Ela estendeu a mão em minha direção, segurando um simples copinho plástico contendo líquido marrom. Permaneci decidido. Então, automaticamente peguei sobrepondo sua mão macia, pequena e quente. Virei a bebida num só gole, como se fosse um drink de algum bar barato. Aparência densa e amarga remetia a barro. Quase me engasguei.

_Preciso te algemar, seria algum problema para você?

_Como? Você é sadomasoquista, por acaso?

Respondi em tom de brincadeira, mas com leve nervosismo.

_Não...Não sou. Pode até parecer. As algemas têm um proposito diferente. Quem sabe em outra ocasião...

Repetida envolvente piscadinha.

Confesso não ter entendido sua fala, seria para quebrar o “gelo” ou realmente sensualizar? Seguido de seu lindo sorriso, novamente a doutora olhava para mim com mesma tranquilidade inicial.

_Relaxe, foque no relógio, colocarei sons com ondas binarias para ajudar.

_Ondas binarias?

_Música bonitinha de baixa frequência tranquilizantes. Seus demônios irão gostar já que são dançarinos.

Juntamente de bom humor, considerava emanar confiança; assim, executei todas as instruções sem hesitação.

Sentado de frente para aquele relógio, a música calma começou tocar.

_Quanto tempo para surtir efeito, Doutora?

_Aproximadamente 15 minutos.

_Qual a duração?

_Deixe fluir. Agora você irá partir para maior viagem de sua vida, será fantástico, quem sabe, assombroso. Gostaria mesmo poder ir com você, mas não posso... Então, boa viagem querido. Até logo...

_Qual o destino?

_O meu, fazer café... Foco no “tic-tac” do relógio!

_Você precisa guiar... Ajudar a entrar em estado de concentração profunda.

_Não preciso. Confia no processo.

Concluiu a Doutora ao deixar a sala. Nesta hora uma sensação gélida tomou conta, como se algo sombrio estivesse entrado no ambiente.

Enquanto acompanhei Victoria sair, pude contemplar ainda mais sua beleza singular. A elegância de seus movimentos cuidadosamente executados é inegável, possui delicadeza e charme. Mesmo com sua baixa estatura, seus traços são harmoniosamente proporcionais.

Necessito focalizar, olhar fixo no relógio. O sonido dos ponteiros apresentava simetria perfeita com a música ambiente. Conforme os minutos passavam, ficava gradativamente ansioso pela experiencia prestes a conhecer.

Pouco a pouco aquele chá surtia efeito. Comecei imergir num turbilhão de sensações e cores. Os símbolos das paredes antes irreconhecíveis, agora ganhavam formato significantes diante de meus olhos. Minha mente expandiu para um mundo espiritual desconhecido, tudo ganhava conexão. Dúvidas e medos que assombravam durante toda minha vida desvanecia junto ao cheiro estimulante daquela sala.

Em meio da viagem, a Doutora voltou, não, tudo se tornava outra coisa. De fato, aquilo já não lembrava o consultório. Estava sendo transportado para outra dimensão, obscura, inteiramente acorrentado e rodeado pela areia. Juntamente comigo alguma figura etérea ou espécie de guia espiritual, esse desconhecido mostrava o caminho dentro de minhas memorias do passado, ajudando compreender e liberar traumas dos quais haviam estado enterrados no fundo da minha alma.

Sofria em cada lagrima derramada como chuva inundado o deserto. Cada gota contia memorias dolorosas, apesar disso, clara promessa de alívio. Naquele instante, as correntes presas em mim se quebraram, permitindo imergir como ser transformado, fortalecido como nunca.

Qualquer passo em direção a luz tangia uma batalha ganha contra o abismo da mente.

Na profunda escuridão, escavei emoções nas quais confrontava medos num ato de bravura contra inimigos invisíveis.

A tormenta emocional arrastava meu choro por águas turbulentas, onde lutei contra a maré dentre pensamentos negativos. Mas, à medida que as ondas acalmavam, encontrei uma ilha de autocompaixão. Lá, entendi o real significado da jornada. Não era sobre eliminar demônios, e sim encontrar maneiras de navegar através deles. Descobri rara luz onde brilhava semelhante à um farol, ela cresceu banindo absolutamente todas as sombras que haviam me atormentado por muito tempo.

Tic-tac do relógio cessou. O passar acelerado do tempo convertia horas em meros minutos, neste exato momento, o véu do mundo ilusório partiu dissolvendo todas as barreiras psíquicas. Finalmente, despertei para realidade.

_Eis meu caçador de demônios favorito!

A doutora estava radiante, pareci acordar de um estado de coma

_Dormi por quanto tempo?

_Dormiu? Você permaneceu ativo todo tempo conversando comigo, 3 horas de pura diversão. Paradisíaco!

_Surreal!

_Tudo bem? Aproveitou os ensinamentos?

_ Sim, estou bem. Na verdade, vivo!

_Você quebrou as correntes do passado, desta forma, conseguira alcançar mudanças significativas em sua vida. Embora, este chá xamânico seja uma poderosa feramente na qual permita mostrar verdades em nosso interior, a real mudança provém da vontade de aprender com a trajetória da vida. Viva consciente, busque pelo autoconhecimento e as incríveis conexão que o universo pode proporcionar.

Por fim, percebi nunca lutar contra demônios e sim comigo mesmo. Travei uma batalha interna contra meu próprio inimigo íntimo, onde aos poucos ficava destruído por dentro. Senti profundo reconhecimento pela vida em todos seus aspectos. Agradeci muito por tudo aquilo, cada sentimento, sensação, palavra foi intenso. Nunca esquecerei todos os aprendizados valiosos, no qual trouxeram perspectiva nova e reformada.

Encerro esse capítulo da minha vida sabendo: embora esta consulta possa ter terminado, os ensinamentos permanecerão como guias constantes. E enquanto o tempo passa, as histórias evoluem. A lição daquela noite continuará a inspirar abraçar cada experiencia com sabedoria para escrever com coragem, meu próprio conto de superação e mudanças. Essa é uma desalinhada história sobre certa jovem, curiosa doutora a qual conseguiu escrever palavras de transformação nas páginas em branco de minha mente. No fim, percebo meu próprio enredo precisar de um novo começo. Conforme o tempo avança, carrego comigo a gratidão de ter cruzado o caminho daquela que ensinou tanto em tão pouco tempo. Cada bloqueio quebrado, tornou uma história pessoal, reforçando a certeza da qual somos moldados tanto pela escuridão quanto pela luz.

A última frase dita pela Dra. Victoria Sombria, responsável por me resgatar do inferno, permanece vivida em minha memória.

Viktor. Foi um prazer ajudá-lo a abraçar sua loucura, caro paciente. Jamais esqueça:

“Demônios estão em todo lugar, especialmente em nossa cabeça.”

P.H. Petters.

P H Petters
Enviado por P H Petters em 20/04/2024
Código do texto: T8045955
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