O Conto da Mula Doida

Isso que conto agora é parte da minha história, que em meados de 1986, gravou-se de fato em minha memória. Aquele tempo era um tempo de aventuras, de conhecimento e de muitas histórias e estórias.

E assim vivia eu, cá no meu mundo, o mundo lá fora no seu, entre mesclas de uma coisa e outra foi assim que tudo isso aconteceu.

Dar-se o caso que seu Raimundo bola, que de bola quase nada sabia, morador de são Ruberto, um povoado um tanto distante de minha cidade, Esperantinópolis; Veio a casa de meu pai montado em sua lustrosa mula, revolver uns negócios de sua vida, como todo mundo fazia; e para não andar na condução que era um pula-pula, resolveu vir de montaria em sua, já dita, lustrosa mula.

Como já me era de costume montar a cavalo, dar banho e pôr na solta, sem nenhum queixume assumi tocar de cuidados sua estimada mula, até que viesse buscá-la, saciando minha vontade de ser um destro cavaleiro, desejo há tempos esmerado.

Em cima daquela mula me sentia cavaleiro, vento no rosto e riso prazenteiro parecendo fazendeiro. A mula corria a galope, e eu com cuidado severo, todos os dias levava pra solta, dava banho e uma volta, um garoto aventureiro. Eu queria dizer a todos que agora eu era um homem. Já sabia galopar, mas não usava cela quando montar precisava. Cela é coisa de gente boba, dizia eu com meus botões, só velho que quer usar. O bom mesmo é só esteira para melhor segurar.

O dia em que o senhor Raimundo bola marcou de vir era uma sexta feira. Dia de quem bebe e gosta de farra, dia de jogar e farrear, e gastar tudo o que ganharam no trabalho arriando-se aos montões.

A minha cidade era pequena ao que hoje posso ver, mas naquele tempo era tão grande dava até pra se perder.

_ Agora o caso se assevera.

Chegando já o fim do dia, lá por volta das quinze horas, eu peguei o cabresto, uma esteira de capim, um punhado de milho, minha baladeira e pro mato vou sair. Taciturno vou andando em quase nada pensando, meio desencantado da vida, meu coração estava cheio de cruel desengano. “Tudo que é bom duro pouco”, dizia eu cá pra mim.

Ah! Se essa mula fosse minha! Cuidaria todo dia para que ela fosse sempre forte e zeladinha. Afinal, para ter um animal sempre à mostra é preciso dele zelar. Dar carinho e banho frio, água limpa e bom capim, e até um punhado de milho pros olhos dela se alegrar, e corra a galope, sem que se canse ligeiro, deve-se sempre alimentá-lo.

Uma burra dessa não pode viver assim, resmungava eu já quase pra se ouvir, seu Raimundo não sabe nem cuidar da bichinha, que pena ver ela partindo assim, e quando ela me ver lhe trazendo milho, vem correndo e sorrindo pra mim. É Deus dá asas pra quem não sabe voar!

Então eu caminhava em mais nada a pensar, pois o coração ferido, pela perda irreparável, só me causava angustia e sofreguidão, eu queria mesmo era chorar.

E agora como eu fico?

Me danei a perguntar.

E de tanto falar sozinho já o povo sentado às calçadas, começou a me notar. _Calma! Calma!

_Disse eu cá, com meus botões.

Tudo que é bom dura pouco, é preciso me refazer, “escavacando arranhões”.

Esse daqui foi unha-de-gato quando eu corria na capoeira, Eita burra danada! Esse outro caçando no mato, acho que foi tirica, no terreno do seu Bira. E assim eu caminhava em direção à solta, ia buscar a mula de seu Raimundo Bola, que já tinha avisado que chegaria lá em casa, bem cedo no outro dia.

Todo animal bem cuidado tem por dono o que zela. E quando cheguei à porteira, arriei a esteira; e ela fazendo sinal de ligeira, caminhou querendo comer as espigas de milho que eu com tanto gosto lhe trouxera.

Oh! Que Hora difícil da minha vida! me despedi sem vontade daquela mula ligeira.

Debulhei todas as espigas, coloquei o milho na mão; ela comia sorrindo, rasgando meu coração. O animal parece gente quando se cuida bem dele, e até rende mais no trabalho, indo além do que pode para agradar o cocheiro.

Coloquei-lhe o cabresto nela e fiz a funcinheira, pus a estreira no seu lombo depois de um banho frio no riacho da pingadeira e saí em disparada de uma só carreira. Quando se sabe cuidar bem do bichinho ele responde sem pêia, é só falar que ele corre, do jeito que se anseia.

Subi a estrada correndo, passei pelo meio da rua. Vi todo mundo me olhando abismados, era só um cochichado falando de um para o outro, esse daí tá de lua.

Mas o que ninguém sabia daquilo que eu sentia, era do meu desapontamento; porque eu naquele tempo nem mesmo um só jumento possuía.

_ Eita mulazinha ligeira minino!

Parecia que me entendia! Pois toda vez que eu dizia, vamos! ela murchava as orelhas, baixava a cabeça, e desembestava no mundo, correndo sem estribeira.

Piriri, piriri,...e eu então me sentia livre, montado naquela mula, sempre correndo a galopar; eu e ela soltos no mundo, não tinha corrida curta.

Passei pelo laranjal, beirando o riachão, vento no peito e amor no caração. Piriri, piriri, piriri... Amava a vida que tinha, embora não tivesse tudo, mas eu era feliz com tudo, o que Deus me havia dado no mundo.

Montado naquela mula o tempo voava a galope, agora o tempo e o espaço se amiúda.

Eu já quase chegando em casa, resolvo lerdar e ganhar tempo pra nós, quis atrasar a partida da minha mula amiga, que despedindo-se, já da vida se ia.

_Ai! Meu coração se aperta ao entrar já na cidade!

Passo a mão no pescoço dela, o coração bate ligeiro, sou só eu e ela se despedindo em querela. Nunca vou te esquecer, dizia eu para ela.

Peguei a próxima rua à direita, andei cem metros e agora à esquerda e mais cem metros dali já dava para ver a rodoviária, que nem sempre movimentada era, por falta de passageiro.

Passei pelo lado de trás porque por lá o progresso não andou, era rua de chão batido; barro avermelhado, e o meu coração apertado, já quase espremido por dentro, de tanta dor, eu sinto um outro sentimento, que de apresso se fez em revolta pois era a minha última volta naquela mula, e por isso já nada me fazia contente.

Acunhei os pés no vazio na bicha, que ela peidou, e se encolheu feito lagartixa; deu três pulos pra frente e saiu serpenteando a estrada feito cobra em disparada.

_ Vixe meu Deus!

_ Piriri, Piriri, Piriri!

A mula subiu de repente, três calçadas e dois batentes; entrou pela rua do cabaré subindo feito doida, e eu tentando segurar o cabresto, dizia: “ôa...Ôa..Ôa.. mas que nada que ela ouvia! lá em cima na porta do “Bar chá da égua” tinha uma mulherzinha feia em pé, que viu de longe e assustada a mula doida desembestada e gritou fino, desesperada, “valei-me minha nossa senhora, tome conta desse menino”.

Tem cuidado menino doido, era tudo o que eu ouvia daquilo que se dizia. Enquanto eu despontava lá em cima montado na mula doida, seu major que era gente boa, subia a ladeira lá de casa, mano tropo de cachaça, com uma enorme peixeira na cintura. Ele vinha da rua bebinho do tipo que nem café amargo cura. Quando seu major estava bebo era valente e abusado do jeito que não se atura.

O tempo agora entrava em sincronismo. Eu correndo em cima de uma mula doida, seu major no alcoolismo. Já chegando ao cruzamento da rua, em frente o comercio de seu totó, foi bem ali que a carreira deu um nó.

Tirei a mula para direita, e agora para a esquerda... não teve jeito. O andar de seu major, bailando de um lado pro outro, costurando a rua inteira me deixou sem apelo. Lasquei a mula no peito do velho bêbado.... que ele se estatelou no chão e ainda engasgado gritava...vou matar, vou matar.

Meu Deus me ajude, nesta hora de aflição! Ainda sou muito moço, não posso morrer agora não. Entrei pelo beco do lado direito de casa ainda montado, vou deixa a mula no quintal!

E o povo alvoroçado lá fora, na rua, gritava e falava alto, tinindo; Vixe minha nossa senhora o seu major agora mata o menino!

Meu coração batia tão forte que até parecia tambor. Corri às pressas tranquei as portas e janelas fiquei acuado aquilo tudo era um terror. Mas não esquecia da mula, o peito já estava marcado, eu correndo com medo em casa trancado, e ela, cuidada sozinha lá no cercado.

Enquanto isso minha irmã mais nova, já de joelhos dobrados, clamava ao pai eterno que por seu amor tão terno me livrasse daquela sina; e dizia ainda, que mesmo que fosse uma oração de menina, a ouvisse por clemência e me livrasse de morte tão ínfima.

Minha mãe já pra lá de aflita procurava entender o ocorrido. Eram tantas traquinagens, quantos filhos ela tinha, para cuidar não era fácil e quase sempre fazia sozinha. Coração de mãe é como céu, tem espaço para todos; pois, dava-se o caso que na nossa casa morava um grande amigo de meu irmão, e nosso amigo também, que nessas horas aperreadas, procura defender a casa com tudo que ela tem.

La fora o homenzinho tosco, cheio de cachaça e louco, louco e agora moco do tabefe que a mula lhe deu, gritava bravateando “vou matar! Vou matar...passou por cima de mim com o burro, eu não perdoo por isso eu mato...” e eu cá, trancafiado em casa de meu pai, suplicava a Deus que me livrasse naquela hora de agonia, pois, se assim fosse eu seria obediente de noite e de dia.

Eram duas correrias. Uma cá, dentro de casa; minha mãe falando bem alto e meus irmãos que ali estavam me olhando e reprovando, e outra lá fora, seu major de peixeira em punho, e o povo azougado falando alto, enquanto isso eu no meu mundo, chorava pela mula que logo, logo já se ia levando minha alegria.

Fecha o portão! Eu ouvia.

Mas na verdade eu não compreendia. Pra que tanto alvoroço por causa de velho que bebia? Então como era de ser, as ondas do mar se acalmam e o mundo volta à calmaria. O velho major se fora para a sua casa a descansar, e minha família aturdida também procurou se acalmar, e em minha memória de menino aventureiro gravou-se esse caso ligeiro, do apresso que tive por aquela mula me envolvendo nessa querela, e mais nunca eu quis por vontade própria que se falasse no caso dela, pois, que quase deu-se o caso de morrer por causa dela.