Lady Rebeca e o Vagabundo

Era um dia especial. As crianças estavam animadas, falantes. E mamãe estava, hoje, muito boazinha, pois prometera deixá-los levar Rebeca a pé para a casa da Bisa. Isso era mesmo um fato inédito.
Desde que viera morar na casa de seus novos donos, Rebeca não tinha mais saído para a rua, como costumava fazer quando era uma cadelinha de rua.
- Que saudades, - pensava ela - que vontade de ver de perto a rua novamente, correr com os outros cachorros, fuçar o lixo, ou deitar-se na calçada, correr atrás das bicicletas... Que delícia! Mas tudo isso era passado, pois agora ela pertencia a um casal de garotinhos que a amavam muito, mas que não a deixavam sair para a rua.
Ali no seu novo lar ela tinha uma casinha só dela, importada. Um tapete macio servia-lhe de colchão. E seu novo dono dera-lhe de presente o seu pequeno cobertor de quando ainda era bebê. Era um belo cobertor azul claro com um ursinho estampado bem no meio, muito bonito e aconchegante.
Tinha sua própria vasilha de água e outras duas de comida. Tinha ração de qualidade alternada com comida caseira, tudo para deixá-la mais a vontade.
Levava agora uma vida de princesa, era muito bem tratada, adulada pelos donos e tinha um lindo jardim onde podia deitar-se ou correr com os passarinhos, mas para a rua não podia sair.
Ah! Tinha banho também, uma vez a cada 15 dias e com um xampu bem cheirosinho.
Rebeca na sua esperta intuição canina entendeu que hoje seria um dia diferente e realmente o foi.
Não que não tivesse saído mais de casa desde quando viera morar em seu novo lar. Mas o fato é que nas poucas vezes em que saíra a passeio fora de carro com seus pequenos donos, ocasião em que metia o focinho para fora da janela e ia sentindo o cheiro da brisa fresca. Fora isso, só as escapadelas que já dera vez ou outra para a rua, com os donos indo no seu encalço e dando-lhe uma bronca daquelas por ter escapado pelo portão aberto.
Mas hoje ela iria a pé para a casa da Bisa, se bem que entendeu perfeitamente que iriam colocar-lhe a tal coleira vermelha para levá-la orgulhosamente na corrente. Bem isso era melhor que não sair nunca para a saudosa rua.
Não que não gostasse da vida boa que estava levando, mas sentia-se um pouco presa algumas vezes. Era o preço da mordomia em que agora vivia. Nunca antes ela tivera tanto carinho e jamais fora tão amada como agora. Por isso, afastava a melancolia que a saudade da rua lhe trazia e punha-se a brincar com seus pequenos donos.
Na hora marcada, colocaram-lhe a corrente e ela toda contente saiu portão afora, puxada pela mão de seu dono. Ia faceira desfilando pela rua, acompanhada de seus donos, que não se cansavam de tagarelar de tão alegres com a novidade de poderem levá-la para um passeio tão longo e ainda por cima a pé.
Quando subiam à rua da casa onde moravam levaram um susto danado. Um cão enorme, preto, latiu forte batendo-se contra o portão de grades de ferro, querendo sair para atacar Rebeca.
Alisson muito assustado entregou a corrente a mamãe que também estava trêmula e já se arrependia da aventura, enquanto Natasha dera um grito de pavor, ao ver os olhos castanhos claros do cachorro fixando Rebeca como se quisesse trucidá-la.
Andaram mais rápidos e logo estavam fora do alcance do malvado canzarrão.
- Ufa, ainda bem que aquele cachorro estava preso, - desabafou Alisson - imagine se ele estivesse solto na rua.
- É mesmo, - concordou Natasha - o que iríamos fazer?
- Íamos ser mordidos pelo cachorro, nós e a Rebeca e ainda iríamos levar uma bronca do papai que já nos alertou para não sairmos a pé com uma cadelinha, pois pode ser muito perigoso - disse mamãe preocupada com o resto do trajeto que ainda tinham a fazer.
Quando atingiram a Avenida Egídio Francisco viram que logo à frente três cachorros vira-latas brincavam numa lata de lixo. Foi Rebeca vê-los e esticou a corrente querendo ir ter com eles. Mas mamãe segurou firme na corrente e a reconduziu ao caminho, repreendendo-a e nos alertando do perigo.
- Se um cachorro destes vem atrás de nós e nos ataca nada poderemos fazer, não devíamos ter saído de casa a pé com a Rebeca. Devíamos ter ouvido o papai - dizia mamãe amedrontada e realmente arrependida de ter iniciado aquele passeio.
Passaram ao largo e felizmente os cachorros tinham coisa mais importante a fazer, que correr atrás de uma cadelinha marrom.
De novo Alisson e Natasha se alternavam segurando a corrente que mantinha presa Rebeca, que a todo o momento fazia menção de querer soltar-se para correr livre rua afora.
Em dado momento, mamãe avistou mais alguns cachorros brincando no canteiro central da avenida e de novo teve medo, por isso pegou outra vez a corrente e passou a conduzir Rebeca.
Eram três cachorros de rua, sujos e mal encarados e tão logo viram Rebeca vieram na sua direção latindo e querendo atacá-la.
Mamãe, então, com firmeza espantou os cachorros, ameaçando-os com um pedaço de madeira que encontrou na calçada e os covardes recuaram amuados.
Mas um deles, o mais sujo de todos, meio amarelado de poeira, pelos grudados uns ao outro de sujeira, mancando de uma perna, insistia em seguir Rebeca, a despeito das ameaças de mamãe em atirar-lhe o pedaço de madeira.
As crianças diziam:
- Não mamãe, deixa o vir, ele é tão bonitinho e ele gostou da Rebeca. Deixa-o namora-la, por favor.
- Que? - respondeu mamãe - imagine. Lógico que não, já basta um vira-lata, além do mais esse cachorrinho é horrível. Olha só que sujeira e manca de uma perna.
- Sai! - mamãe ameaçava o “manqüebinha” com o pedaço de pau que ela pegara na rua para nos proteger caso algum cachorro nos atacasse. Ele parava um pouquinho, mas quando a gente andava, lá vinha ele manquitolando atrás de nós e da Rebeca, persistente como todo apaixonado.
- Mamãe - disse Natasha - ele está apaixonado pela Rebeca.
Mamãe sorria e dizia brincalhona:
- Como é atrevido esse maqüebinha, além de feio, sujo e vira-lata, ainda é manco e pensa que pode conquistar a Rebeca. Ela agora é uma “lady”, uma cadelinha de família, não vai dar bola para qualquer pulguento que apareça.
- Mas ele só precisa de um banho, mamãe - dizia Alisson, realmente interessado em levar o cachorro para casa - deixa a gente levar ele para casar com a Rebeca. Como vão ser lindos os filhotinhos deles!
- Você está louco, - dizia mamãe e apressava o passo, puxando Rebeca.
Olhava, então para trás e lá estava ele, o Manqüebinha, persistente, seguindo a sua eleita, que também olhava para trás como se também quisesse ir ao encontro dele. Às vezes ele parecia cansado e parava por um momento, mas logo recuperava o fôlego e retomava a caminhada atrás de sua amada.
- Que cachorro insistente, não, Rebeca, - brincava mamãe - ele não desiste, já andamos mais de dois quarteirões e ele, mesmo manquitolando, vem aí, firme.
De novo os protestos das crianças em favor do Manqüebinha:
- Olha mamãe, ele gostou da Rebeca, deixa a gente levá-lo para casa - pediu Alisson.
- De jeito nenhum - retrucou mamãe, de cenho franzido - chega de cachorro, ainda mais essa sujeira aí, nem pensar.
- Mas ele está apaixonado pela Rebeca - insistiu Natasha.
- Essa paixão passa, assim que a Rebeca sumir da vista dele. Imagine - dizia mamãe a brincar - um pobre plebeu, sujo e esfarrapado, ousar pretender a mão de Lady Rebeca. Onde já se viu tal coisa?
E riam, enquanto seguiam apressados rumo à casa da Bisa.
Andaram mais outro quarteirão e meio e lá estava o tal do Manqüebinha, manquitolando, sujo e cansado atrás da sua amada Rebeca.
- Será que esse amor é antigo? - brincou mamãe - quem sabe no seu tempo de plebeia Rebeca andou dando bola para esse pulguentinho sujo e fedorento?
- É mamãe, pode ser, deixa a gente levar esse cachorrinho para casa. A gente dá um banho nele e vacina, remédio para pulgas e ele ficará lindo como a Rebequinha.
- Nem pensar, já disse - retrucou mamãe - cachorro lá em casa só a Rebeca, que é uma cadelinha educada e sabe se comportar.
Já a casa da Bisa estava à vista e ainda o Manqüebinha se mantinha firme atrás de nós.
Entramos portão adentro, não sem antes levar outro susto do cachorro do vizinho que ao ver a Rebeca latiu furioso do outro lado da grade, nos fazendo estremecer de medo.
- Ufa! - exclamou mamãe - enfim estamos salvos! Nunca mais vamos fazer outra loucura dessas, ouviram? - disse mamãe fechando a chave o portão atrás de nós.
Mamãe retirou a corrente, soltando Rebeca, que correu pelo corredor atrás da casa indo direto para o quintal, afugentar o pobre do gato marronzinho, que mal pressentiu sua chegada saltou para cima do muro, pondo-se em total segurança.
Toda metida, Rebeca se sentia a rainha do quintal e também a rainha da rua e dos corações caninos.
Enquanto Rebeca se divertia no quintal, correndo atrás das galinhas e afugentando o gato, o solitário vagabundo suspirava lá fora, olhando o portão verde que o separou para sempre do seu sonho de amor.
O tempo passou... Rebeca nunca mais saiu a pé para a rua a passeio. Agora, ela sabia, tornara-se uma Lady, tinha um lar encantador para viver, compreendeu que não podia ser mais uma cadelinha de rua.
Não que tivesse se esquecido dos prazeres da rua, da liberdade, mas também se lembrava perfeitamente do que era sentir fome, frio. E de como era doloroso ser escorraçada, ser abandonada do outro lado da ponte do rio Corumbá e ter que viver de migalhas, enfrentando o frio e a fome. Preferiu transformar o galante vagabundo em doce lembrança... Apenas... Às vezes é preciso ter sabedoria para fazer a escolha certa...
Desde então, Manqüebinha pode ser visto, quase que diariamente, deitado na porta de um bar na mesma avenida onde um dia conheceu Rebeca...
Ele foi adotado pelo dono do bar.
Arádia Raymon
Enviado por Arádia Raymon em 27/06/2017
Reeditado em 27/06/2017
Código do texto: T6039235
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