Diabruras II (segunda parte de três)

Bento passou parte da noite pensando nos detalhes e chegou até a rabiscar coisas num papel. Silenciosamente abriu algumas gavetas e separou sua roupa de domingo. Cuspiu no sapato e deu mais uma escovada. Precisava estar bem lustroso. Pronto, tava bonito.

Quando foi se deitar, já passavam das duas da madrugada. Parecia que inúmeras borboletas voejavam em seu estômago e custou a dormir.

Acordou antes da hora de ir para a escola, coisa que jamais acontecia, mas o dia de hoje seria mais importante que qualquer exercício de caligrafia ou do que os lanches que surrupiaria.

Bento acreditava ter amadurecido anos durante a madrugada. Pegou uma banana do cesto sobre a mesa e saiu correndo pela porta da cozinha. Não podia vacilar. Vai que sua mãe o agarrasse pelos suspensórios como de outra vez... Estaria perdido!

Cruzou a porteira do sítio como se um porco do mato o perseguisse e partiu para a casa de Maria, um sobrado que ficava em cima do açougue. No caminho colheu algumas flores e catou pedrinhas.

Chegou devagar como um gato e se postou debaixo da janela de sua amada. Mirou e começou a tacar as pedrinhas, uma por uma, até que ela viesse ao peitoril.

- Eita Maria, como tu demorô! Tava acordada não? - sussurrou.

- Tava me arrumando pra escola Bento, mas o que é que tu tá fazendo aqui a essa hora? Tua mãe sabe?

- Deixa de prosa, põe tua roupa mais bonita e desce logo. Temos assuntos sérios pra tratar hoje. Coisa de adulto. Sabe não?

Maria também era filha única, e ser criada por um pai que passava o dia inteiro no açougue não era nada divertido, coisa que Bento lhe garantia todos os dias.

Puxando Maria pela mão direita, desceram a rua e viraram à esquerda, rumo à praça principal. Ainda era muito cedo e, furtivos, entraram por uma porta lateral. Era a coxia, uma antessala da sacristia, onde o padre já tomava seu desjejum matinal.

- Minha nossa! Que susto Bento! Jamais pensei em vê-lo por aqui a essa hora. E você Maria, o quê faz aqui com ele?

Sem enrolação, Bento já tinha um discurso ensaiado, e pensava em rapidamente convencer o pároco a ajudá-lo em concluir sua missão.

- Bom dia e sua bença seu padre. - disseram os dois beijando-lhe a mão.

O ancião ficou impressionado e desconfiado com aquela inusitada educação, ainda mais vinda de Bento que, muito à vontade, foi sentando à mesa servindo-se de um naco de pão.

- Qué também Maria? - Bento ofereceu a iguaria, ignorando o olhar do padre que mesclava de orgulho à decepção.

- Ora, ora se não é o velho Bento! Você quase me enganou heim, mas sirvam-se crianças. Aqui é a casa de Deus, onde o pão nutre o corpo e a palavra é salvação.

Maria se sentou à mesa farta. Delicada como era não pegou muito, só uma fatia de bolo e meio copo de suco. Bento, por sua vez, comeu um pouco de tudo. Para quem estava com tanta pressa, parecia que ele estava estocando para uma viagem ao redor do mundo. O padre estava junto para terminar seu café, imaginando o que trouxera aqueles dois tão cedo. Certamente não era por conta da fé.

Acabados os acepipes, o pároco retomou a pergunta que o encafifava.

- Pois bem, Bento e Maria, o que fazem os dois tão cedo em minha sacristia?

Bento levantou-se empertigado, e seguido por Maria, limpou os farelos de bolo da roupa e pigarreou pra controlar a euforia.

- Seu padre, não sou homem frouxo e nem de muita história. Cá estou eu com Maria pra pedir sua benção e de Nossa Senhora. Pretendo me casar mais que já, sem demora, ou o pai dela vai me caçar e tirar meu couro pra fazer de estola.

Maria, que estava de mãos dadas com Bento, soltou-a com a rapidez de uma rajada de vento. Deu um pulo para trás e de olhos arregalados disse:

- Casar com tu? Jamais! Quem disse?

O padre não se aguentou e ria sem parar de tamanha desfaçatez do menino em trazer Maria sem do seu intento a comunicar. Bento, surpreso, num instante murchou. Estava certo de que a doce e linda Maria correspondia inteiramente ao seu amor e o desposaria, ainda que às pressas e sem testemunhas, só ela, Bento e o padre, no sagrado ambiente da sacristia.

O padre ficou sério ao perceber a tristeza do menino. Fora um golpe muito forte que lhe atingira o coração e lhe torcia os intestinos.

- Bento, meu menino, o que você estava pensando? Por mais que seja esperto, você tem apenas oito anos. Não tem lei para casar crianças e Maria também não quer. Não podes chegar aqui com ela pela mão e fazer o que bem quiser. Ainda que fosse, e Maria concordasse, teriam que ter a benção de seus pais para haver esse enlace. Penso dá tempo de irem para a escola, e não se metam mais em confusão. Vou ficar aqui pedindo a Nossa Senhora que lhe conceda superação. Você está exasperado e isso não faz bem pro coração.

Maria estava triste por saber que tinha causado grande decepção. Talvez Bento não superasse. Talvez com ela nem mais falasse. Suas tardes voltariam a ser sem graça atrás do balcão e pior que isso, talvez seu pai e a mãe de Bento se casassem e eles se tornariam irmãos.

Bento queria argumentar. Queria aos dois convencer, mas preferiu se calar. Sentia-se humilhado, por Maria desprezado e isso um homem não podia conceber. Saiu pela porta apressado e, sem olhar para trás, queria sumir, desaparecer.

.

.

.

Continua...

Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 13/11/2018
Código do texto: T6501361
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.