O abrigo

O abrigo

...tirou o casaco, apesar da casa ser fria. Ampla e fria. Cada cômodo tinha sua designação. A sala, sob o lustre antigo, era obtusa. O tempo passara por ali, deixando a responsabilidade que só o velho tem. Tudo era grande: portas, janelas, teto alto; inalcançável, pensou. O frio invadiu novamente. Tentava uma reaproximação, não com o outro, mas dentro. Recolocou o casaco, sentindo com certo prazer o abrigo. Nunca o buscou em si mesma , mas fora; encontrava-o em alguns momentos, mas estes eram fugazes como ela própria.

Como se isso lhe custasse a sobrevivência, foi ao armário e procurou o maior e mais pesado dos seus casacos . Sentiu um calor suave e denso. Da janela ampla e velha, via as luzes da cidade e ouvia os barulhos que chegavam até a porta da varanda. Uma paisagem concreta, estava tudo ali: o centro da cidade. Do alto, apenas os neóns e os carros se movimentavam, numa lógica que ela não podia alcançar. Tudo era longe , tão distante, pensou novamente. Não sentia-se triste, não como sempre conhecera a tristeza. Era uma anestesia. Tirou o casaco e ousou sentir frio, sentir frio numa casa ampla, diante da imagem do nada da cidade. Algum sorriso lhe veio a boca. Aprendera a ser triste nas ocasiões devidas e alegre em tantas outras, mas o sorriso lhe escapou. Sonambuliticamente, imaginou que sendo triste em grande parte, quando uma tristeza verdadeira chegasse, ela não poderia vir por completo, já que era amortecida por tantas pequenas outras. Não recolocou o casaco, que agora parecia-lhe pouco. Foi pro seu quarto e se entregou ao abismo do sono e do sonho, debaixo de um pesado cobertor...