Deixa correr...

- Tudo deve correr…deixa correr…mas não tentes parar.

Sob a luz da lâmpada fria ele deitou seus anseios mais secretos. Confessava a si mesmo, e nunca ousara dizer alto, tudo aquilo que lhe afligia, enganando o próprio coração com mentiras doces, ilusões tão macias quanto o afago de uma messalina. -

Sua ousadia era um passo a menos do que a marcha de um cágado.

Mas a solidão, acima de tudo, o confortava na mais densa dor. Era ali que ele chegava mais perto de si, de sua casa, sabe-se lá onde ela estava, sabia apenas que não pertencia àquele lugarzinho. Sim, era a única certeza em sua vida: não pertencia ao seu nicho, ora, não gostava de onde morava, odiava o que fazia, jamais se apaixonara pelo cotidiano de sua vida infeliz. Mas ali a dor era diferente, sozinho ela se lhe vinha pura, silenciosa e muito mais pesada, tão pesada que era extasiante, e isto ocasionava uma certa espécie de prazer.

- estrela cinza era pura melancolia caindo no oeste, aquela estrela de mármore tão frio que congelava sua alma... -

Sugava toda sua vida, era como se todas cores do mundo subitamente fossem transformadas em preto e branco tão contrastantes que ardiam os olhos, sim, poderiam doer tanto o olhar que o homem jamais acreditaria haver uma oposição na evidência daquilo.

Sob a luz fria ele deitava sozinho em uma pedra gelada. Olhava para o céu buscando um lar, procurava uma estrela para descansar, mas era somente uma infinita escuridão que encontrava. O maldito azul-escuro que rezava a ele sua insustentável dor de desacerto, desajuste. Maldito era ele entre os desesperados, pois não havia nem onde achar base para seu desespero. Quando um homem não sabe de onde vem, e procura demasiadamente por seu lar, perde totalmente suas bases, não sabe onde pisar, mas aprende que nada tem a perder. Suicídio, indiferença, escárnio a tudo aquilo que existe. Algumas opções não são tão belas quanto o amor.

Mas havia um átomo, uma ínfima partícula em todo seu ser que vibrava em uma direção teimosamente descompassada. E apenas nela ele confiava, e apenas ela ele amava, e nela ele depositava sua fé, a fé de que através dela iria reencontrar seu lar perdido. E na solidão maldita da noite, sobre a laje do campanário, ele encontrava o início da estrada para seu lar na dor, uma dor que amava, um amor que tinha sob vontade.

- A mulher de prata glacial subia no sentido contrário da estrela. Seu corpo propunha a mais doce das inocências, envolta em pano branco; mas seus olhos furtavam a alma com uma luz rubra...a única cor no mar de preto e branco. -

Ele levantou a cabeça e tornou a deitar, adormeceu. Acordou com uma mulher beijando-lhe os lábios. A mulher da sua adolescência, aquele caso inesquecível retornara, aquele que lhe tomara noites de sono e uma esperança incerta de ser arrebatado para outro mundo através de um fantasioso transe que se lhe viria através do seu gozo naquela intocável vulva.

Não, não era sonho. Ela estava de volta, em carne, osso e volúpia, pronta para ele, embrulhada somente para ele como um presente de natal. Ah, momento tão doce que se tornaria impossível sustentar uma vida após aquilo.

Era tudo tão belo e melancólico que ousou convencer-se de que ainda dormia e sonhava. Fechou os olhos e a mulher não escapava nem à visão da mente. Que divina Isis era ela?

Prazer era o arrebatamento máximo. A lassidão intercalava com a tensão sexual de uma luxúria sem igual.

- Havia uma estrada de tijolos coloridos subindo como escada através do azul-escuro infinito. Não enxergava o final, mas a cada passo naquela estradinha levantavam poeiras cósmicas, brilhando intensamente, sobre suas pernas. -

De repente começou a perceber que, afinal, já não era tão sozinho. Havia alguém naquele mundo que, após tê-lo experimentado uma vez, o queria novamente. Sim, alguém o desejava, alguém precisava dele. Ah, amaldiçoe este conforto, pois a ilusão da vida é fatal aos infelizes, aos fracos de coração.

- A poeira subia tão brilhante que se ouviu um riso purpúreo vindo do infinito. -

Abraçou-a forte e gozou. Deleitou-se naquele instante como jamais poderia em uma eternidade. Aquele momento era desprovido de tempo e espaço, estava suspenso em um mundo paralelo, livre de qualquer conturbação. O rio, em uma última onda causada por uma pedrinha que lá fora atirada, parou, permaneceu inativo, passivo, em um momento de glória.

O homem não suportava tanto sabor, sofria espasmos com o prazer. Resolveu abrir os olhos para a mulher. Ela sorria, e era como se todas cores de súbito retornassem, e o riso soasse mais alto. Ele mesmo riu.

Continuou agarrando ela com força e disse, de uma forma tão espontânea que assustava:

- Eu te amo.

- A poeira cósmica que brilhava simplesmente caiu como cinzas, e uma rajada de ventou soprou-as pelo chão. A estrada sumiu e ele caiu depois dos poucos passos que havia dado. A estrela subia novamente, no leste, no oeste, no norte e no sul. Só havia dor. -

A mulher, sem dizer nada, desapertou o abraço, fitou os olhos do homem que, atônito, tentava balbuciar uma explicação para um mal entendido, queria nunca ter dito aquilo, mas já era tarde. Ela sustentou aquele olhar por um instante, então levantou, ajeitou sua roupa já virada de costas para ele e caminhou.

Andou, mas foi para todos os lados, pois ele não sabia onde procurá-la, sentiu como se fosse um pequeno pilar de vergonha sobre um chão interminável. E qualquer caminho que tomasse para tentar achar aquela deusa jamais o levaria a algum lugar.

Sob o holofote do palco da vida ele agonizou, um solilóquio pesaroso. Deixou seu amor viajar para longe do seu controle, da sua vontade, até à irracionalidade do maior prazer de todos - um Baco envergonhado que jamais conseguiria beber novamente qualquer outro vinho se não aquele que o mostrara o mais soberbo sabor de todos.

Incapaz. Morreu sob o olhar das estrelas. Mas ele não via nenhuma, ele não via nada, apenas sentia cair na escuridão de um abismo.

titiao
Enviado por titiao em 04/05/2006
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