Entre Tantos

Sem gosto.

Foi assim que ela se lembrou daquele beijo sem motivo. Aliás, pergunta-se, haveria motivo para um beijo? Motivo para aquele beijo?

Não importa.

Sua imagem no espelho se distorcia em lembranças sem sentido, desconexas. Tinha a impressão de gostar de se ver no espelho, mas era apenas impressão. O que lhe causava gosto de fato era admirar a profundidade da sala nua refletida no espelho.

Uma imagem amarelada, mas não pela poeira afixada no espelho, mas por um tempo ingrato, que fazia as coisas envelhecerem devagar. As suas coisas envelheciam numa força fraca, pensava.

Se um gosto a lembrar.

Poderia ser triste passar uma vida inteira sem o prazer de uma lembrança doce. Mas aquela era a sua vida, e se era triste, era um problema seu. Como tantos foram os problemas em sua vida. E o que seria uma vida inteira não sabemos em que ponto da estrada estamos? Era uma vida finda a cada dia, pensava.

Ela nunca se olhou no espelho do lavabo. Talvez porque ele não refletisse nenhuma profundidade, talvez por que ele simplesmente lhe refletisse os interesses. Ou melhor, seu único interesse, enterrado numa vala indigente, num tempo esquecido.

Cada dia era consumido em doses lentas. Um copo, uma lembrança, uma fagulha e muita sombra. Mas não se achava no direito de queixume. Haviam muitas vidas piores, ela sabia.

Seria a guerra? Aquele ano de quarenta e dois passou tão rápido. Bem, pelo menos ela o esqueceu tão rápido, ou assim fingia. Como fingia a si mesma não se lembrar dele.

Nunca havia pensado em homens, ou sentido falta de algum. Eram tempos de guerra, haviam outras preocupações, como manter-se viva. Embora aquela não fosse sua guerra ou a guerra dele, ele partiu.

Partiu com tantas promessas, voltou tantas vezes sem prometer. Mas jamais chegou em casa.

As vezes, olhando pelo espelho da cozinha, aquele com o canto quebrado, via sua imagem surgir ao longe. E tentava chorar. Mas não conseguia. E a imagem se desmanchava com a tarde.

Fui convocado, ele disse, e a beijou de surpresa.

Sem aviso.

Sem gosto.

Ela não podia corresponder, não sabia como fazê-lo.

Não fechou os olhos, e ele abriu a boca como que a esperar por alguma lingua, alguma palavra.

Ela não fechou os olhos, nem abriu um sorriso. Apenas ouviu um pedido desconexo de casamento. Seus pais também ouviram, os pais dele ouviram, e em uma semana estavam casados.

Eram tempos de guerra.

Por que diria sim, ou não? Preferiu ficar calada. Como ficou naquela noite ao ouvir a ordem: pegue.

Ela sabia como pegar, ou o que deveria fazer. Até tentou tocar, mas não encontrou sentido. Não encontrou tato. Então ele mesmo pegou. E utilizou de uma forma que ela não poderia conhecer. Que ela não poderia gostar. Que ela poderia sangrar, mas nem isto fez. Apenas ficou calada.

E ele partiu no dia seguinte.

E ela se olhou no espelho do lavabo e viu em seu rosto uma mulher que ela não conhecia. Não viu mais a menina que se olhava no espelho d'água. Era uma mulher feia, sem nome, sem gosto.

Poderia até ter respondido aquelas cartas, mas como falar de um amor tão quente se ela sempre estava no inverno? Como falar de um fogo, se para ela tudo era cinza. Como falar, se dese o seu casamento não sentira nenhuma falta das palavras?

E então não escreveu.

E ele não voltou, jamais.

A noticia de seu desaparecimento em batalha fez sua mão chorar, sua sogra gritar, seu cachorro uivar. Fez ela calar-se, mais uma vez.

Pelo menos lhe sobrara um filho na barriga, pensavam os mais próximos. Mas ela nada dizia. Não entendia porque engravidara, porque nem sequer sentia a tal criança.

Abortou.

Não porque desejasse, apenas naturalmente. Tão natural quanto a vida lhe acontecia. E já lhe acontecia há setenta anos. Setenta anos naquela casa, a olhar o espelho, a se lembrar de quando falou consigo mesma pela última vez em frente ao espelho da cozinha.

Sem ter respostas, quebrou o espelho com um soco.

Feriu-se.

Calou-se.

Às vezes ele parecia surgir nas tardes. Tomara que não queira entrar, imaginava. E a noite o levava.

Talvez fosse solidão, pensava. Bobagem... há vidas piores.