Coisas da vida

Eliane Accioly

Perto de Roberto, os poros de Alaíde se abrem quais manacás; porejam, umedecem, exalando cheiro acre entre fruta, flor e bicho, que o endoida. Nasce-lhe um filho, entretanto, os laços viscerais não são cortados num repente, e ela se volta completamente para a cria; pior, acredita nos quarenta dias de resguardo, e renuncia a abraçar e beijar seu homem, pois tal proximidade a enlouqueceria de desejo.

Dizem que só homem precisa de sexo, que bobagem. Alaíde é assanhada. Tem pena é das carolas. Mas por que, então, não renuncia a dogmas milenares, como o do resguardo? Vê que Roberto se ressente, e a fita daquele jeito perturbador que reconhece, sabe-se lá por quê, na filha Mariana. A vida, mistério puro!

Após dez dias do nascimento de Laura, Roberto avisa que vai caçar e pescar. Alaíde zangada se cala. Após um mês de mato, no fim do resguardo, ele retorna para a mulher, o olhar de mormaço que o caracteriza nos bons momentos. Também Mariana, a filha pequena, tem olhos de quentura e vazante, oblíquos, brilhantes, profundidade de rio traiçoeiro, enganador.

Alaíde se engalfinha com essa filha. Sente-se malévola. Não consegue evitar a gratuidade do tumulto em que se precipita. Mariana, enfrenta-a com o olho, boca selada e apertada, calando as palavras. Já nem manda a menina abaixar os olhos; não adianta, ela é assim como o pai.

O tempo se arrastou até o marido voltar com o mundão de roupa suja. Alaíde entrega à Maria Miranda, pedindo pelo amor de Deus não lhe mostre nada de suspeito, nem de inocente, nadinha. O leite seca por qualquer besteira. Mas do terno cor-de-nata, desse não consegue se desgrudar, que é isso de levar terno para o meio do mato? Soca-o no fundo do armário, amassando os vestidos requintados. Alaíde não quer e, ao mesmo tempo, tem de saber o que melhor seria ignorar.

Agora é o reencontro. Alaíde e Roberto ocupam-se a noite inteira, famintos. A bebê ressona tranquila. Amanhece, e Roberto vai para a loja, o negócio pede o olho do dono.

No silêncio do quarto, Alaíde enrosca-se no penhoar e, pé ante pé para não acordar a neném – mas, principalmente, porque está fazendo coisa errada –, abre o armário e puxa o terno lá do fundão. Senta-se no chão, pernas abertas, tornozelos cruzados, o dito cujo no meio do sôfrego regaço. A calça revela volume suspeito. Roberto nunca sai sem lenço de bolso, e, neste, a marca de três bocas desenhadas em batom. Três! Ela inteira fervilha, munduru de cupim rachado ao meio, em um só golpe de enxada. O que ele aprontou? Desata a chorar. “Que ódio!” Ciúme e orgulho ferido queimam.

Tira a neném do berço e dá o peito. Depois das tarefas com a pequena busca a poltrona, que lhe parece de espinhos. Atira-se no chão, como em pequena nas horas de aflição, e ali fica, o peito, gaiola arrochada. Assim Roberto a encontra, ao voltar para o almoço. Entre eles o lenço, a mancha. A prova do crime arcaico entre homens e mulheres, de uns contra os outros.

“Que idiota!”, pensa Roberto, por que esqueceu o diacho do lenço no bolso? Parece de propósito! Jura que não, será que existe nele um outro Roberto? Diacho! As mulheres não aceitam a verdade do quanto o sexo é tempestuoso num homem, o quanto ele é fraco diante do cheiro de almíscar de Alaíde, sem poder tocá-la, por causa do resguardo, diacho! Envergonha-o ter ciúme dos filhos quando recém-nascidos, do olhar de enlevo de sua mulher para eles. Queria-a só para si! Agora Laura, de quem Alaíde não se desgruda. Que pena da Mariana, sua pretinha, morta de ciúmes da irmã. Era a caçula e a única menina-mulher: dois tronos perdidos de uma vez.

Mariana não encontra enseada com a mãe. Abriga-se no pai. Por que o desencontro entre mãe e filha? Pela predileção que Roberto nunca escondeu? Mariana, parecida a ele. Vê que desafia a mãe com os olhos, quando embirrada. Roberto teme a braveza de Alaíde, pois ao invés de brigar e pôr para fora, gela. Com Mariana, tão pequena, dias e dias sem falar. Com ele então, uma tortura.

Roberto sabe que não conseguiria mentir para Alaíde. Morre de inveja de homem que engambela. Um amigo pego na cama com outra, os dois pelados, ainda assim, criou a ilusão de estar sozinho. A mulher acreditou. Ou preferiu. Alaíde sabe, e nada a demove.

O que fazer? Ficar bravo de ser espionado? Imaginar Alaíde trancada na jaula glacial, fantasiar que de seu corpo e olhos se irradiaria a raiva que a deixa bela e gelada, além do seu alcance, ah, isto podia. Mas, como a inventaria largada no chão, menina debulhada? Não soube acolher o choro raro, soluços abundantes, lágrimas. Ela, que não chora, quase nunca.

Desconcertado, passa a mão no brilho farto, ondulado e loiro dos cabelos. Por um instante, não o repele. Recebe o carinho, onça mansa. A mão, esfomeada das curvas conhecidas e desejadas descia pelo decote, quando a onça dá o bote. Empurra o macho, recua o corpo abotoando o penhoar, e avisa lacônica: “Mais quarenta dias, voltei ao resguardo.”