foto  "music for the eyes"



O fazedor de chuva


                         " E se anseio mares de Europa, é a poça 
                                Escura e fria onde ao crepúsculo perfumado 
                                Uma criança se abaixa triste e solta 
                                Qual borboleta de maio um barco delicado" 

                                              Arthur Rimbaud.
                                                




Num zoom, bem de perto mesmo, o que se via, era uma grande guerra - tampinhas de cerveja viraram tanques ameaçadores, gravetos se transformaram em mísseis que destruíam prédios e casas tão sólidas, representadas por caixinhas de fósforos, tão frágeis. Subitamente, surgiam heróis que resgatavam a paz, iconizada em pedacinhos de papel branco que caíam sobre a cidade, simbolizando a piedosa chuva que lambia as chamas. Dois garotos brincavam numa rua de terra. Se um, fazia os efeitos especiais, o outro, por sua vez, se encarregava da trilha sonora - fingindo tocar um violino, ele festejava a pequena vitória. Aquela batalha em miniatura tinha mesmo ares de uma augusta glória de descendência tão remota como as estórias infantis. Naquele entardecer, o vermelho colidia com o negro buscando uma trégua no horizonte. A tempestade do dia anterior deixara poças, aqui e ali, como vestígios de um céu inconsolável, quase feminino, em que Deus já esquecera de contar as lágrimas da mulher, mas, na pequena hidrosfera, em algumas poças escuras e barrentas, os meninos colocaram barquinhos de jornal. Eles aportavam num azul topázio, trazendo mantimentos e comida, a promessa de perpetuação da vida. Naquele microcosmo, eles se transportavam a um mundo fantástico em que a inocência reconstruía o caos, como um rito cosmogônico, luminoso, num espaço sacralizado chamado: infância. Num plano geral, o lúdico universo dissipava-se dando lugar a um austero cenário - um bairro nos arredores de Saravejo fortemente atingidos dois dias atrás. Muitos corpos ainda continuavam lá, no meio dos escombros. O mundo parecia ter esquecido aquele lugar e sua espiral de intermináveis noites. Ao toque da sirene, os meninos enfiaram os bonequinhos no bolso como talismãs poderosos e correram para pernoitar no abrigo. 




Doze anos depois. 



Verão em Nova York. Meio-dia, hora em que o sol alcança o zênite, as sombras são quase imperceptíveis e a luz é intensa em sua majestade. Os termômetros marcam trinta e cinco graus.




Um morador abre a janela de seu apartamento. Uma pequena corrente de ar, timidamente penetra a sala. Lá do alto, o asfalto parece desprender uma fluorescência. O jovem dobra as mangas de sua camisa, ajeita o violino que voluptuoso se encaixa sob seu queixo, alinha o arco e desliza-o sobre as cordas. A dimensão em que mergulha não é menos mágica do que aquela, naquele estranho e onírico entardecer. Ele fecha os olhos e deleitosamente, imagina uma chuva fresca que cai sobre os pedestres apressados. Sua música soa ainda mais vibrante. Ele sorri, mas ainda se pergunta: por onde andaria o pequeno fazedor de chuva? A epifania sonhada pelo virtuose é tão bela que, as vezes, sua música lhe parece ser apenas uma freqüência de ondas sonoras que se dispersam no ar, mas ele sabe que algumas lembranças são como uma caixa de ressonância, amplificando seus sentimentos para que o mundo os ouça.


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* Esse conto tem como cenário, Sarajevo, mais uma Fênix que renasceu das cinzas, mas também poderia ser outro lugar. Juntei a ele, três preciosidades: A Música, Um Afeto Inestimável vertido em dois ternos personagens e o Universo Lúdico, em que o escritor e a criança têm a graça e o previlégio de perscrutar. Ele é dedicado ao verdadeiro talento de todos que nos fazem viajar no universo atemporal da arte. 




Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 27/07/2006
Reeditado em 18/07/2007
Código do texto: T203171
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