O DOUTOR DE AROUCA

O DOUTOR DE AROUCA

É alto, magro e careca, de rosto cumprido tostado pelo sol onde ao centro um nariz proeminente salta à vista de qualquer um, empurra uma carroça construída por restos de velho trem desmantelado. Os aros das rodas são pintados de vermelho, o eixo suporta uma espécie de barraca em madeira coberta por uma chapa de zinco colorida de amarelo. Na frente e sob um fundo azul-turquesa, tem toscamente desenhado à mão, umas letras a branco que anunciam a actividade do artista:

- Dr. de Arouca Especialista Estrangeiro.

Pendurada num dos rebordos do aparelho circulante, uma corneta da tropa em metal polido, aguarda o momento de entrar em acção. Usa, por cima de um fato castanho de fazenda às riscas em adiantado estado de decomposição, uma bata branca salpicada por toda, de nódoas de azeite ou banha de porco, que chega cá abaixo ao meio das canelas das pernas. A camisa é branca rota e suja nos colarinhos; no pescoço, um laço vermelho com pintinhas brancas enfeita esta figura ridícula. Calça os pés quarenta e quatro com umas alpercatas galegas de flanela vermelha demasiado amaricadas no conjunto notável da vestimenta do homem.

Bem se esforça ele por parecer um doutor mas, a qualquer cidadão mais atento o que mais parece na verdade é um qualquer cortador de carnes verdes de matadouro municipal.

Empurra a carroça das virtudes curandeiras no caminho por baixo das fragas da Abitureira ao cimo de Cancelos e já perto da casa do Zé Maria cantoneiro, mesmo a esbarrar com Sebolido.

Curvado para a frente, pés fincados no chão de terra batida, a suar como um toiro, arrasta a pesada carroça portadora de milagres.

Já por alturas da padaria do Álvaro onde o caminho se torna mais suave e se alarga o horizonte, pára a viatura e enxuga a testa suada com um lenço tabaqueiro vermelho às riscas brancas e pretas.

O silêncio é pesado em Sebolido. A aldeia em peso dedica-se aos trabalhos da rega dos milhos nos campos dispersos pelas fraldas da serra da Boneca. Os sons que perturbam este ambiente rural, são de cigarras a gemer nos montes e de melros em franca e aberta cantoria.

De repente explode na quietude da tarde um som estridente e desafinado de gaita de fanfarra de bombeiros. Os galos do Jerónimo respondem ao inaudito desafio em cantoria pegada. Os cães do Pinto desatam num ladrar irritante. A galinha preta do Valdemar que depenicava as couves do Cipriano corre aflita a proteger a ninhada recém-nascida.

Aquele som estridente volta a fazer-se ouvir no povoado e já Gondarém e Midões do outro lado do rio, se sobressaltou com tamanha algazarra.

A carroça vai andando lentamente a percorrer os cem metros que faltam para alcançar o centro do Outeiro das Cortes enquanto o doutor vai soprando no endiabrado instrumento. O povo começa a aparecer aos postigos das casas e já muitas crianças acompanham o inesperado circo correndo atrás numa gritaria medonha.

Parou ali por baixo da tília, sentou-se na pedra de granito a aguardar que o povo se juntasse e ficasse a saber das últimas novidades da medicina mundial. Quando umas vinte pessoas, homens e mulheres já se interrogavam acerca da actividade do homem, entra em acção o propagandista.

Usa um funil a servir de amplificador afim de que todos possam ouvir o seu improvisado e eloquente discurso:

-Acabo de chegar do estrangeiro e o que tenho para vos dizer pode ser a salvação de muitas vidas. Alguns dos senhores cavalheiros e das senhoras madames por acaso não padecem de males desconhecidos e incuráveis? A quem dos aqui presentes e não presentes não dói uma perna, um braço, a barriga ou tem queda de cabelo? Por acaso nenhum dos senhores cavalheiros ou das senhoras madames tem dificuldade em obrar? Por acaso nenhum dos vossos filhos tem piolhos, pulgas ou até carraças? Por acaso nenhum dos senhores cavalheiros ou das senhoras cavalheiras, não trás uma praga de percevejos ou lêndeas?

Acabo de chegar do estrangeiro e aqui na minha farmácia ambulante trago praticamente remédio para todos os males. Não, não é banha da cobra não senhor, eu não sou contrabandista, sou um especialista estrangeiro encarregado pelo Estado para curar as pessoas. Isto é um xarope inventado há um mês na costa do oriente médio, na terra onde as ruas são calcetadas com sêmeas, as fontes deitam ora vinho tinto ora vinho branco e andam sempre a passear nas ruas, porcos, metade cozidos e metade assados com uma faca e um garfo espetados no cerro. Ali teve lugar esta invenção maravilhosa que já salvou muitas vidas mas infelizmente não as vai poder salva-las todas porque só uma pequena quantidade de produto se recuperou do naufrágio do navio que trazia este potente remédio.

O povo começa-se a agitar, nos olhos arregalados de alguns, um brilho de alegria começa a florir. As mulheres em cochicho, contam umas às outras os males de que padecem. Uma atmosfera de urgência hospitalar estabelece-se ali. O Serafim começa a mancar, o Simão deita as mãos às costas e faz uma cara de sofrimento, o Ribeiro coça ao fundo da barriga, nas partes, e faz também um ar de consumissão, a Rita acachapada, mija atrás da tileira e o cão do Luís Manco ferra na perna do Luís Carriço. A filha do Mocho cai com o fanico e esperneia-se histérica no chão de cascalho.

-Dá-lhe água gelada, diz o Bernardino.

Qual água gelada qual carapuça, diz o Barnabé, do que ela precisa é de umas varadas nesse corpo vintão a derreter com cio.

-Cala-te malcriado podia ser tua irmã, diz o Paulo irritado.

-Vão ver então a mercadoria! O especialista já se apercebeu que estão reunidas as condições favoráveis à venda do medicamento e começa a tirar de uma lata de bolacha Maria, uns frascos usados de óleo-de-figado-de-bacalhau recolhidos numa entulheira qualquer e que agora aparecem cheios de um líquido cor de melancia.

-Por apenas vinte mil réis qualquer senhora, qualquer cavalheiro, pode por fim ao seu sofrimento. Não estou aqui para enganar ninguém, e a prova disso é a garantia que dou a este formidável produto. Se qualquer senhora, qualquer cavalheiro tiver alguma reclamação a fazer, daqui por um ano, nesta mesma hora, neste mesmo local, poderá trocar esta maravilha por uma pomada ainda melhor!

-Chegue-me dois! Grita o Angolano!

-Não cavalheiro, primeiro é para aquele senhor com a marreca nas costas, o cavalheiro não vê que a criatura está a sofrer? Diz o doutor apressado em recolher as notas de vinte.

Vinte minutos de feira e o famoso produto esgotou na carroça. Dez frascos de água colorida eram o conteúdo da lata das bolachas.

-Cheira a bagaço, diz o Marreco com o nariz espetado no frasco.

-Não cheira a bagaço nenhum cavalheiro, cheira a aguardente dos Pirinéus preciosidade rara das Américas latinas! O Marreco calou-se envergonhado pela ignorância e a carroça afastou-se em direcção a Vale-dos-Travessos.

Manuel Araujo da Cunha
Enviado por Manuel Araujo da Cunha em 15/10/2006
Código do texto: T264768