NARRAÇÕES DE UMA INFÂNCIA FELIZ ( I )

No intuito de levar aos mais jovens e crianças que não têm idéia de como que eram a infância e a juventude nos mágicos anos 60 e 70, sobretudo nas cidades interioranas do Brasil, inauguro aqui uma série de narrações ocorridas durante a minha infância na até então doce, romântica e aprazível cidade de Poços de Caldas - que na época contava com cerca de 40/50 mil habitantes - , onde pude desfrutar de uma infância e juventude ricas de fatos e acontecimentos pitorescos e divertidos, e que aos poucos vão se perdendo no esquecimento. Espero que goste!

AS MÚMIAS DO TERROR (história 1)

Não se pode falar de infância sem falar em traquinagens.

Qual criança que vive solta numa cidade linda, num tempo de tanta paz e energias positivas, não apronta algumas?

Foram muitas as "artes" que arquitetei ou participei, mas algumas foram realmente criativas e engraçadas.

Uma delas ocorreu creio em 63, quando eu tinha sete anos e meu sobrinho, Eduardo, quatro.

Eduardo era versátil como eu: se na sua casa tinha que levar uma vida britânica, conforme o regime imposto pelos seus pais, na minha ele virava moleque de rua, e o mesmo se dava ao contrário...

Ao lado da pequena fábrica de camisas de nossa família, que ainda funcionava nos fundos de minha casa, havia uma casinha onde existia uma enorme caixa de madeira onde eram jogados os retalhos, sobras da mesa de cortes. Para nós, no entanto, servia como uma imensa piscina de panos, na qual pulávamos, nadávamos e mergulhávamos e depois ficávamos nos coçando a noite toda.

Nesse recinto, as costureiras da pequena empresa deixavam suas bicicletas, quando iam trabalhar. Eram cerca de seis bicicletas ou mais, que ficavam uma ao lado da outra.

Certo dia, com inspiração acima do normal, meia hora antes do encerramento das atividades, sugeri ao Eduardo que nos transformássemos em múmias. Assim, fomos amarrando tiras de retalhos em nós mesmos, desde as canelas até a testa, transformando-nos em verdadeiros bonecos de panos coloridos.

Ao soar o apito da fabriqueta, ficamos deitadinhos de costas, imóveis, aguardando a entrada das funcionárias - disfarçados, numa camuflagem perfeita entre os retalhos - que foram chegando, como sempre radiantes, depois de um estafante dia de trabalho, ansiosas para voltarem às suas casas; e como era de costume, entraram e foram destravando suas bicicletas, alegres e cantantes...

Foi quando resolvemos, lentamente, nos levantarmos do fundo da enorme caixa, em silêncio.

Ao perceberem os estranhos movimentos, um alvoroço se instaurou. Num ambiente fechado e pequeno cerca de meia dúzia de mulheres histéricas gritavam, agarradas às suas bicicletas que se enroscavam; o pânico era total!

Nós, que não esperávamos tamanha repercussão, fomos os que mais se assustaram, porque não imaginávamos o tamanho da balbúrdia que a inocente brincadeira pudesse ocasionar.

Eram mulheres tropeçando nas bicicletas que caiam no chão em meio a gritos de pavor, tentando se salvar de algo de que não faziam idéia, enquanto nós inutilmente tentávamos dizer que éramos nós, para terem calma... E quanto mais falávamos, com a voz dissonante e distorcida sob os panos, maior se tornava o terror...

Logo, os outros funcionários foram chegando, também assustados, querendo averiguar que tragédia estava acontecendo, tais os gritos alucinantes que ecoavam no ar, que chegou aos ouvidos da vizinhança que foi se aproximando... Até que deram conta de que era nós dois, que estávamos semi-estáticos, ainda envolvido pelos panos, sem saber o que dizer, paralisados de susto.

Balanço da brincadeira: Escoriações nas canelas, mulheres brancas e trêmulas tomando água com açúcar, bicicletas quebradas e retorcidas e nós dois, já conformados, esperando a hora da surra! Foi realmente muito engraçado!

Tião Luz
Enviado por Tião Luz em 15/10/2006
Reeditado em 12/11/2012
Código do texto: T265022
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