SANGUE CIGANO

Sangue Cigano

Conto

A caravana serpenteou pela poeirenta estrada nas fraldas da serra da Boneca. As carroças, puxadas por cavalos eram sete carregadas com os mais diversos utensílios que podem existir numa casa e, sentadas por cima dos panais das tendas, seguiam as mulheres, umas ainda jovens, outras mais velhas segurando no colo crianças pequenas que baloiçavam ao sabor dos saltos que as irregularidades do caminho provocava na molengona. Ao lado e segurando nas rédeas dos animais, caminhavam os homens e dois cães já velhos com aspecto de cansaço deitando fora da boca a língua seca pelo calor da tarde. Uma lata acompanhada por diversos utensílios de cozinha pendurada num dos lados da carroça da frente, continha objectos que tilintavam e anunciavam distante a passagem da peregrina procissão.

Tinham atravessado a fronteira em Bragança vindos das longínquas planícies espanholas estabelecendo-se em Vimioso depois de numa caminhada nómada e sem pressa obedecendo a milenares tradições que os faziam cumprir uma espécie de judaica e errante maldição.

O último acampamento conhecido tinha sido até à madrugada, o campo da feira em Penafiel.

A caravana aparecia no alto a dobar a serra tendo pela frente um cenário maravilhoso que os havia de fazer parar lá ao fundo onde a mancha na paisagem é verde e o Douro corre serenamente

Montaram acampamento por baixo dos sobreiros que ensombravam uma zona plana e adivinhava-se que ali iriam permanecer algum tempo ramificando os negócios pelas terras vizinhas.

Veio a noite que desenhou os contornos das tendas montadas em círculo e iluminadas com foscas luzes de lampiões a petróleo e, cá fora, havia já preparativos do ascender de fogueira. Do meio do silêncio do sombrio lugar, começou a ouvir-se o trinar melancólico de uma guitarra espanhola. Palmas e sapateados anunciavam o principio da festa em quanto alguém com mestria dedilhava as cordas ao mesmo tempo que outro sacudia um pandeiro e um cantar dolente que fazia lembrar o vento a acariciar as desérticas planícies de Almería, enchia a noite de festa onde cá fora as mulheres de castanholas batentes enfiadas no dedo polegar, dançavam o flamenco transformando o ambiente como se sentissem em Sevilha, Córdova ou no bairro de La Mancha ou ainda em Úbeda ou Baeza aldeias tão distantes brancas e solitárias rodeadas de olivais, exprimindo o espírito, a luta, o desespero, a esperança e o orgulho da raça Calé originária das terras difíceis de Sierra Nevada e toda a província Andaluza.

Ao redor da fogueira entretanto acesa, a dança era guerreira e mourisca antiga herança que os mouros perseguidos deixaram no seu último reduto em Granada e só as mulheres evolucionavam na contra luz que o fogo produzia.

A voz masculina do esguio e trigueiro cigano, progredia pela noite dentro solta, carregada de mágoa, nostalgia e saudades das terras longínquas de Espanha que tinham deixado há muito.

… Que bonitos ojos tienes. Debajo de esas dos cejas. Debajo de esas dos cejas. Que bonitos ojos tienes.

Os acordes firmes e melódicos compassados pelo toque da mão do tocador no tampo do instrumento, atraíram o Ramiro que veio ao encontro da improvisada serenata como se seduzido pelo som melodioso que um vento nocturno lhe fez chegar aos ouvidos.

… Ellos me quieren mirar. Pero si tu no los dejas. Pero si tu no los dejas. Ni siquiera parpadear.

Cada vez mais se acentuava o entusiasmo da festa e até o próprio Ramiro já bailava com Vera Lúcia uma das jovens e decerto a mais bela das ciganas do acampamento como se já se conhecessem desde o princípio da vida.

…Malagueña salerosa. Besar tus lábios quisira. Besar tus lábios quisira. Y dicirte niña hermosa. Que eres linda y hechicera

Ao fundo da tenda central, Leandro o velho patriarca assistia à dança enquanto a neta trocava olhares comprometedores com o jovem intruso que parecia fascinado com semelhante visão.

…Si por pobre me desprecias. Yo te concedo razón. Yo te concedo razón. Si por pobre me desprecias. Yo no ofrezco riquezas. Te oferezco mi corazón. Te oferezco mi corazón. A cambio de mi pobreza…

Ramiro já entregava o coração a troco só de um olhar da linda cigana e pouco ou nada haveria a fazer para parar a súbita afeição que nascera ali, a noite apadrinhava e prometia ir crescendo ao longo da dança pagã até se tornar perigosa.

A guitarra ia marcando o compasso e a voz do cigano trigueiro era a mágoa feita cantiga no tremer das cordas vocais que prolongavam o fatalismo dos versos e enfeitavam ainda mais aquela noitada de sonho.

O Ramiro deixou-se prender no amor de um momento por uma cigana morena de cabelos pretos e longos presos por uma fita vermelha e arrecadas douradas a pender em cascata das bonitas orelhas que o olhava na afeição de uns olhos tão negros como as mais negras e belas noites de Andaluzia, desconhecendo a tirania da lei a quem Vera Lúcia jurara obedecer.

Na manhã do outro dia debaixo do sobreiral fumegava ainda a fogueira que aqueceu a festa mas o acampamento tinha partido logo ao alvorecer. O velho nómada accionara a sua condição de chefe e patriarca e antes que o ardor do sangue cigano da neta evoluísse até provocar mortes, deu ordem de partir cedo e para longe onde se escoasse o fogo daquela já maldita paixão

Ele chegou ao ser dia em busca da mulher que o prendera e deparou com a solidão e abandono do sítio onde pela primeira vez se deixou encantar.

Não viu sequer partir a caravana que levou a sua amada e mesmo hoje não sabe se ela é viva ou se é morta ou anda ainda pelo mundo fora e se, talvez lá longe, muito longe, o tenta agora esquecer como ele a recorda agora.

Manuel Araujo da Cunha
Enviado por Manuel Araujo da Cunha em 17/10/2006
Reeditado em 18/10/2006
Código do texto: T266592