PRISÃO INGLÓRIA... A Verdade que eu Conto

PRISÃO INGLÓRIA... A Verdade que eu Conto

CANAVIEIRAS DOS ANOS 70

Estávamos em plena recessão, no sanguinário período do governo Médici.

A época, eu era repórter-redator da revista Estados & Municípios de Angelo Neto, que ajudei a fundar e a construir a sua estrutura na Bahia. A sede da revista era no Rio de Janeiro, mas o alvo do nosso trabalho era a Bahia. A censura aos meios de comunicação era conhecida e discutida pela população. Os fatos que não interessavam ao governo ou que colocassem seus figurões em cheque, eram censurados. Os jornais diários sofriam censura prévia (antes do veículo ser impresso). As revistas e outros periódicos, devidamente registrados no Departamento de Censura e Diversões Públicas da Policia Federal, circulavam sob observação do governo e licença especial que, a qualquer deslize, poderia ser revogada.

Era a época das torturas, dos assassinatos, dos desaparecimentos, cujos números chegam a milhares.

Foi a fase mais dura do regime, quando muitos brasileiros mostraram-se covardes, principalmente alguns deputados e senadores que faziam o jogo da ditadura para se locupletarem do poder.

Entre estes, muitos da oposição e quase totalidade dos arenistas, uma vez que vivemos com o bipartidarismo consentido até 1985.

Vamos à nossa história. Real e verdadeira.

Numa bela manhã de verão de 1971, chegamos a Canavieiras, sul da Bahia.

Eu e Florisvaldo, um amigo de Poções que convidei a trabalhar na revista, dados os nossos laços de amizade. Era a nossa primeira viagem juntos e tudo parecia bem...

Em ltapebi havíamos recebido parte do pagamento da revista, o equivalente a 5 mil dolares.

Chegando a Canavieiras, fomos à Prefeitura e tivemos um breve diálogo com o prefeito local que mostrava sinais de grande nervosismo e inquietação. Achei estranho o comportamento do alcaide, um rapaz de cerca de 30 anos, bem apessoado. Despedimo-nos e, ao sairmos, percebi que o ar não estava normal. Descemos as escadarias, pegamos o fuscão e fomos abastecer no posto de gasolina. Abastecido, paguei ao bombeiro, e ao receber as chaves do veículo, no ato de virar a ignição para viajarmos, recebemos voz de prisão com um fuzil no pescoço. Tanto eu quanto Florisvaldo fomos detidos. Forçados a sair do veículo, sob escolta policial militar, fomos para a delegacia de polícia que funcionava numa rua estreita, próxima à Prefeitura.

Ao passarmos presos, sob a mira dos policiais, observei que várias pessoas, a certa distância, assistiam àquela bravata. Entre outras, o delegado de polícia, o prefeito, o juiz de direito e uma centena de curiosos que nos acompanhavam gritando palavrões contra os terroristas.

Aí entendi que estávamos sendo presos como terroristas, talvez por qualquer semelhança com algum procurado - pensei - e comentei com Florisvaldo: - Fique calmo, pois estão pensando que somos terroristas. Logo, logo, tudo será esclarecido...

Florisvaldo tremia e falava besteiras, acusando-me injustamente de ter sido o causador daquela desgraça...

Na delegacia, depois de identificados, tive uma discussão com o delegado que declarou ser falsa a minha carteira de identidade. A coisa engrossou, a mãe do delegado foi convenientemente enlameada e nós fomos parar no xadrez.

A caminho do xadrez, há cerca de 200 metros da delegacia o caldo entornou; Florisvaldo foi acometido de uma diarréia galopante e a situação ficou ainda pior quando nos trancafiaram numa cela imunda, sem cadeira, sem cama, sem nada. Consegui água com os policiais e tratei de acalmar o amigo com alguns comprimidos de soníferos que carregava, dizendo-lhe ser para dor de barriga. Ele dormiu sentado no chão com a cabeça recostada à parede. Dai por diante pus-me a raciocinar numa condição melhor, sem ter que ouvir choro e palavras ditadas pelo desespero do amigo que, quanto mais falava, mais nos tornava suspeitos. Foi ai que lembrei do Mário Sabino, advogado que conheci em Poções e que sabia ser de Canavieiras. Um dos policiais confirmou-me: Mário era o Defensor Público da Comarca.

Imediatamente mandei-lhe um bilhete. Por coincidência, a esposa de Mário, Olga, é prima de Florisvaldo e uma velha amiga. Pouco tempo depois ela apareceu na prisão, muito surpresa e disse-me que Mário viajara e só voltaria no dia seguinte.

Tratei de requerer o relaxamento da nossa prisão ao Juiz da Vara Crime e Olga foi a portadora da petição. Uma hora depois ela voltaria desolada. O Juiz não atendera o nosso pedido alegando que o Delegado nos colocara à disposição do Secretário da Segurança Pública, em Salvador, e que não poderia deferir o requerimento, apesar de considerá-lo justo.

Uma vergonha de homem, covarde, como a maioria dos magistrados. O tal Juiz, entretanto, autorizou que ficássemos em sala livre até que viesse determinação do Secretário de Segurança Pública.

Horas após, Olga mandou um sofá e uma cama de armar, mesa de centro, sem falar nas merendas, almoços e jantares. Enfim, passamos a noite na cadeia pública, presos, apesar da mordomia que nos foi proporcionada.

No dia seguinte Mário chegou. Foi nos visitar e prometeu que conversaria Com o Juiz sobre uma espécie de custódia. Mais tarde voltou dizendo que apenas um de nós deveria ser custodiado, segundo o que disse ter conseguido com o Juiz. Imediatamente pedi que Florisvaldo saísse logo...

A essa altura já enviara Osmilton (irmão de Olga) a Poções com uma carta para meu irmão Ernesto, que era advogado, na qual contava toda a situação, inclusive chamando sua atenção para não ir à Canavieiras, em hipótese alguma, antes da liberação do Secretário da Segurança, dada a postura ridícula do Juiz, cujo nome era João. João de Tal.

Tudo isso feito, livre das lamentações de Florisvaldo, organizei um pequeno conjunto musical na cadeia, utilizando um ceguinho, bom tocador de cavaquinho e um violão emprestado. O dia e a noite do segundo dia passaram com muita música e whisky scotch. De vez em quando mandava servir os presos de bebida e comida e proibi o ingresso do delegado de policia de Canavieiras no interior da cadeia. Quando ele aparecia era do meio da rua, a 5 ou 6 metros da porta principal. Avisado, eu saia e xingava-lhe todas as gerações passadas e ele ia embora, humilhado.

Entre os soldados (eram três) que conheci na cadeia, dois haviam sido meus alunos na EFGS – Escola de Graduação de Soldados, nos Dendezeiros, em Salvador. Eles que me reconheceram e muito me ajudaram naquele retiro obrigatório a que estive submetido. Depois chegou o Sargento `Manchinha´ que foi muito amável comigo e deixou-me à vontade. - Olhe professor, por nós o senhor estaria na rua. Mas ordens são ordens, temos que obedecer à autoridade superior.

Neste segundo dia recebi uma comissão das professoras recém-formadas com um convite para a festa que seria sábado, no Clube Social local. Prometi estar presente.

Na noite de 6ª feira promovi uma grande seresta no salão da cadeia pública, com a participação de moças e rapazes da sociedade, alguns já familiarizados com a minha situação e totalmente solidários.

Para ir à festa de formatura armei uma encenação de dores estomacais e vômitos provocados. Depois de puxar a descarga, chamei um dos soldados e disse-lhe que havia vomitado sangue, que fosse chamar um médico com urgência. E assim foi feito. O médico examinou-me e foi pedir ao Juiz a minha transferência para o hospital local com diagnóstico de úlcera perfurada. Uns dez minutos após a saída do médico, da porta da cadeia, vislumbrei o soldado que vinha correndo agitando uma folha de papel. Ao chegar perto, o coitado não podia conter a alegria.

Era a liberação vinda de Salvador, de cujo teor jamais esqueci: Sr Delegado de Policia de Canavieiras, determino sejam postos liberdade imediatamente cidadãos Massimo Ricardo Benedictis e Florisvaldo Rodrigues. ass – Joalbo Figueiredo - Secretário da Segurança Pública.

Minha primeira reação foi a de dar uma surra no delegado. Fui à delegacia, mas a encontrei fechada. Tomei o carro das mãos de Florisvaldo e fui à casa do miserável, encontrando tudo fechado, sem viva alma, ninguém na cidade sabia do paradeiro dele. Apenas que havia pedido demissão e sumido no mundo, logo que soube do teor do rádio originário do Secretário da Segurança.

Nesta noite, Mário Sabino promoveu um jantar de desagravo com a Society de Canavieiras. O ambiente era de alegria, até que fui apresentado ao tal Juiz que nem coragem de indeferir o meu pedido de relaxamento de prisão, teve. Com alguns whiskys na cabeça, eu lhe disse: - Não tenho o prazer em conhecê-lo e não aperto a mão de covarde.

Mário ficou constrangido, o Juiz foi embora e a festa continuou. Dai fomos para o Clube Social. Encontrei o prefeito que estava em uma mesa com sua noiva. Tirei também a minha tasquinha de vingança ao pegá-la quase à força para dançar, sob o olhar desesperado do noivo. Aí eu me senti satisfeito.

Passei uns dias namorando nas praias, atravessando o Rio Pardo de canoa (hoje tem uma ponte) e deixei alguns amigos, entre os quais destaco Gutemberg que trabalhava na CEPLAC, Maria do Socorro e os pobres prisioneiros da cadeia pública de Canavieiras, cuja prefeitura não lhes dava, sequer, alimentação.

Em 1973 voltei a Canavieiras para fazer um show, quando reencontrei os amigos e esta história foi relembrada como um fato do passado, ao som de gargalhadas.

Assim é a vida. Quando íamos escoltados pela policia, fuzis engatilhados, como se fôssemos marginais, parte da população a nos molestar gritava - lincha, lincha, lincha - lembro-me de como fiquei perplexo, humilhado e depois enraivecido. Enfim, o tempo que tudo muda, só não tem o poder de apagar da nossa memória aqueles momentos, minutos que passaram tão lentamente e tão dolorosos, entre o posto de gasolina e a delegacia e, depois entre a delegacia e a cadeia.

Antes de sair da cidade, registrei uma queixa-crime contra o delegado, acusando-o de prisão ilegal, uso indevido do meu carro, furto do meu anel de professor e uma caneta Parker 61. Anos depois soube que o infeliz havia sido condenado a 6 meses, mas obteve o sursi. Mas o seu nome consta do livro próprio intitulado ROL DOS CULPADOS.

O promotor público ofereceu denúncia após queixa que lhe fiz, por escrito; e consta que era inimigo pessoal do delegado.

Alguns anos depois, o prefeito de então, sofreu um acidente fatal e do Juiz, jamais ouvi falar...

Mário Sabino e Olga, sempre os revejo em Poções e Osmilton (que levou a carta para o meu irmão Entesto) reside em Jequié.

É bom salientar que, ao receber a minha carta, à noite, Ernesto, foi de automóvel para Salvador e só voltou para Poções com cópia da expedição do rádio assinado pelo Secretário da Segurança. na realidade, havia uma ordem de prisão contra Angelo Carlos Campos Neto, tendo em vista um problema que houve entre ele e o então prefeito de ltarantim.

A ordem fora expedida para todas as delegacias,com o seguinte teor: Por ordem do Sr. Governador, o Sr. Angelo Carlos Campos Neto deverá ser detido e escoltado imediatamente para Salvador. Ass. Joolbo Figueiredo. Acontece que eu não tenho este nome e nem nasci em Niterói. Nada tinha com o caso, portanto...

Para ser mais fiel à narrativa, lembro-me que o cego que tocava e cantava muito bem, tinha o apelido de Coleguinha, era uma figura muito conhecida em Canavieiras e uma das suas composições preferidas tinha alguns versos que jamais esqueci: "Quem quer pegar o passarinho!/ ora meu bem, não vai dizer xou,/ pra despertar o seu carinho/ eu dou querida, o meu amor!...

Para encerrar, esclareço que todos os personagens aqui citados existem ou existiram, de fato. Esse tipo de narrativa contraria aquele chavão do cinema que legenda os filmes: "Qualquer semelhança com fatos ou pessoas é mera coincidência". Aqui tudo é real. E ponto final.

Ricardo De Benedictis
Enviado por Ricardo De Benedictis em 29/07/2005
Reeditado em 03/09/2008
Código do texto: T38714
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