Na roda

No tic tac da caixinha de fósforo em meio ao turbilhão de instrumentos arranjando-se em melodias tristes, regidas por uma voz de preto velho lamentando em canto as desgraças do morro, João se deixa levar pelo samba da roda e faz da canção um modo de se transpor desta sua vida inquieta, a um patamar onde a fome e a pobreza cantada lhe batuca no coração uma dor aguda. Os seus amigos da favela lhe dão esta oportunidade de rever o Rio de Janeiro com olhos mais apurados para com a realidade que os jornais burgueses tanto escondem da gema carioca. Transeunte, ele segue o ritmo incessante do violão e do pandeiro com os dedos batendo na mesa e percebe-se com o peito palpitando-lhe em descompasso uma angústia arrebatadora, seguida por lembranças de quando ainda era moleque e acompanhava o pai nos botecos da Tijuca e o via, feliz de tudo, cantar Noel Rosa às alturas. Agora, temendo a sua voz rouca desafinando a linda música dos negros ali presentes, que conta sobre como era difícil ter ao lado dentro do seu barraco uma morena que lhe rasgara em pedaços o seu único amor próprio, João espanta o medo com os seus incríveis olhos verdes sorrindo para aquela gente alegre e desatina a cantar em memória às suas mágoas que um dia lhe fizeram menino, mas que agora lhe fazem homem, e daqueles que ainda encontram na poesia dos humildes um conforto que lhe afague a alma e a debruce sobre o seu colo.

NietzscheCywisnki
Enviado por NietzscheCywisnki em 30/04/2013
Reeditado em 15/06/2013
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