Chuva de Canivetes

Naquela manhã havia mais uma vez acordado com o costumeiro amargo de fel na boca.

Os olhos remelentos se dirigiram para a janela, e

perceberam que o sol mais uma vez não estava na abóbada

celestial - que amanhecia encoberta pelas cinzas nuvens-pinceladas de

Poe tangiam a linha secante do horizonte,manhã sombria.

O sol mais uma vez atrasou para o dia. Gosta de me irritar.

Sentei-me na cama,reflexivo, com o olhar no horizonte. Pus um dos

dedos numa das narinas. O dedo saiu com uma grande e úmida meleca. Era o fim, foi o que me restou: uma meleca para distração.

O meu cabelo a vida e o desalinho - estava desempregado - e sem um amor. O espelho não mente, jamais.

Os amigos sumiram. Os dias felizes na cobertura numa das áreas mais nobres da

cidade não mais faziam parte de minha vida. O apartamento com

piscina,sauna,salão de jogos,de som e um cinema. É do meu

sobrinho, aqui faço de abatedouro para as novinhas. Não tenho mais o

tesão em adentrar no imóvel sem um tostão no bolso, usando um

tênnis encardido, calça rota e camisa desbotada, cansada de varal,

acompanhado por uma gata linda,bem vestida e gostosa e bem safada -uma interesseira, apesar da tenra idade.

Que dentre todas, escolherei áquela que tiver os lábios mais

sequiosos, e que saiba beijar como Judas beijou.

Recitava assim,na cama, nu e ereto para elas. E a beijava no rosto,

enquanto a disvirginava numa penetração lenta,bem estudada. No geral,

elas faziam cara de dor, e tentavam conter as investidas de meu tronco

com as mãos. Com paciência, vencia a resistência e a penetração se

tornava profunda - onde dor e prazer se mesclavam. Então, reclames de emoção de ter um homem na cama pela primeira vez na tão sonhada

dor se transformavam em gemidos e de sons indecifráveis de prazer - a penetração vaginal, tão explorada em fantasias em intermináveis

momentos de masturbação juvenil.

A meleca foi deixada grudada no lastro da cama. Fui ao banheiro-estava

de pau duro. Masturbei-me, ali diante do vaso, enquanto me recordava

dos cabaços tirados na cobertura do sobrinho. Do nada surgiu nas

lembrança as musas Merelyn, Marlene Dietrich-os rostos,de musas do passado. Sônia Braga

as pernas e a bunda-na juventude- e de Madonna, a safadeza total e absoluta,mesmo depois do 50. Regina

Casé com 18 anos, os seios.Esporrei no chão do banheiro,tive que

escorar-me com uma das mãos nos azulejos, de fraqueza.

banhei-me,troquei-me e fui para a rua buscar um ar mais puro do que o

monóxido de carbono do ar de minha graça matinal. La embaixo, ao observar a

longa avenida, disse, com os meus botões: a cidade está sempre muito

poluída, de gente.

nas ruas tomava um segundo banho de olhares estranhos,ferinos. Nas

portas das fábricas: “Não Há Vagas” - escrito em vermelho, letras

garrafais. Agressivas,tipo " Afaste-se."

Voltei para casa, desanimado,abatido. sentei-me numa poltrona e

pensei:não nasci para ser operário-é isso. O universo tem coisa

melhor para mim. O pequeno se apresenta, devido a pensar pequeno.

Olhando pela janela vi a chuva de canivetes que se desenhava no céu.

Um gato rosnava, não se sabe de onde, talvez, estivesse morto. Foi

atingido. Morcegos azuis entraram pela janela, pairando sobre minha

cabeça. Tomei mais uma cerveja ,no gargalo. Pairei a cabeça no

travesseiro, enquanto o meu corpo estava nu, no banheiro urinando

cerveja fedorenta.

Pensei: amanhã será um novo velho dia, certamente, acordaria.Não

estarei morto. O costumeiro mau humor. O eterno fel na boca e na alma. Os cabelos em desalinho,a barba por fazer e a vida,um bagaço.

Olhos remelentos, vermelhos denunciando a ausência do sol. Um astro

pirracento,chato - que ousava não brilhar, ao amanhecer.”

Com o dedo, talvez procurasse mais uma vez alento. Mas, nem mais

meleca haveria para confortá-me. Nada mais restaria naquele suntuoso

apartamento na Graça - que era a sua desgraça. Solitario no conforto,

no luxo. A academia particular empoeirada,teias de aranha na alma.

Não vou chorar - sou forte. O tempo não muda nem a minha vida. Mas,

não derramarei lágrimas. Um homem de verdade não chora.

Não acreditei no delírio,contudo os canivetes choviam aos cântaros,

tilintavam na vidraça da janela e formavam grandes poças no asfalto. O

trânsito estava um caos.Como todos naquela cidade suportariam tal

chuva? Indagava-se. Ouvi o som de passadas no corredor,de salto alto. Talvez, fosse mais uma ninfetinha à minha procura desejando ser disvirginada.

Talvez, papai e mamãe que sempre adoraram tomar banho de chuva

estivessem mortos.

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 08/06/2013
Reeditado em 18/09/2013
Código do texto: T4331317
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.