Lobotomia

Ele queria esquecer. Esqueceria se não fossem as memórias. E esqueceria mesmo. A porta estava aberta, mas nem sombra entrava por lá. E a água pingava. Quente e insaciável. Quantas vezes? Lá, olhando da janela do banheiro. Quantas vezes? A rua vazia. Peito idem. As fotos derrubadas, os cadernos rasgados, documentos queimados. Uma vez só. A vez. A decisiva vez. A porta se mexeu só um pouquinho com o vento que vinha de fora, entrava pela janela aberta do banheiro onde a água pingava quente e insaciável, inundava o cômodo úmido e quieto, trepava com a porta e, sutilmente, sussurrava para que ela fosse um pouquinho para a direita. E ela ia. E rangia. E o silêncio voltava. Só por vinte e quatro horas. O resto delas era só o resto. Inexistente. As fotos derrubadas na vã expectativa de que as memórias fossem derrubadas juntamente. Lobo. Lobotomia. Quantas vezes? Incontáveis, infindáveis vezes. A água pingando, mas os olhos fechados. Sei lá, ele só queria esquecer. E não ser ele mesmo...

Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 29/07/2013
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