O forasteiro

A mãe da menina olhou a refeição com tristeza e segurou o choro porque estava diante da filha, tentando não parecer desesperada. As coisas não iam bem, sem emprego e sem dinheiro algum, o marido não havia conseguido trazer nada mais que um pouco de grão e farinha. Ele havia feito um acordo com o ferreiro da aldeia: daria sua força por comida.

A mulher mandou a filha para a cama e passou um bocado de tempo convencendo-a de que a fome passaria se se deitasse. A criança pediu para ficar mais um pouco, esperando o pai, pois ele saíra para ver um emprego em outra cidade e poderia voltar com comida.

A mãe não permitiu, dizendo não saber se o marido voltaria mesmo naquela noite. Junto com ele, mais três amigos foram com o mesmo propósito, tentar a sorte noutro canto, pois a cidade não tinha empregos; as pessoas morriam de fome, de frio, com doenças terríveis, sem saber ao certo o que o futuro lhes reservava.

A aldeia não pertencia a nenhum reino e viviam distante de outras aldeias. Ali se estabeleceram, como assim contavam os mais velhos, por causa do rio. Mas não chovia há meses e as plantações minguavam.

Parecia ser algum castigo divino. A filha pedira uma história para ver se conseguia dormir, mas a mulher pensava apenas em uma, algo que não poderia contar para a menina, pois era horrível, e era uma história contada para alertar as pessoas sobre o perigo de não servir a Deus. Segundo ela, a mãe lhe contara que o Devorador andava pelas cidades, pelas casas, penetrando na vida das famílias para lhes roubar a comida, o dinheiro e a dignidade. Era preciso se apegar a Deus.

A mãe acredita nessas coisas. Muito tempo antes, aprendera com a mãe, a avó da menina, sobre por que as pessoas sofriam. Se havia falta de comida, havia falta de oração. Então chamou a filha e se ajoelharam no quarto, com os cotovelos em cima da cama. A menina não queria rezar, mas a mãe insistiu. Ela pediu mais comida e mais compaixão, pedindo também para aplacar a fúria do Devorador, aquele que tudo levava quando não se tinha nada.

Pediu por comida e que trouxesse o marido de volta são e salvo. Rezaram até que a criança sentiu-se sonolenta.

A mãe foi até a cozinha e olhou a panela, se o marido chegasse aquela noite, poderia ficar com fome. E então pediu aos céus que ele já houvesse comido algo no caminho.

Mais uma vez rezou e sentiu os olhos molhados, as bochechas úmidas pelas lágrimas. O sinal da cruz seguiu-se ao vento entrando pela janela e ao canto da gralha.

As pessoas da cidade já estavam dormindo, com as barrigas vazias, com apenas um pedaço de pão ou um punhado de farinha. Eram tempos difíceis na cidade e somente voltar-se aos deuses aplacaria o Devorador.

A mulher voltou a olhar a panela. “Senhor, nos mande um sinal”.

Alguém bateu na porta.

Ela abriu. Seu marido e mais três homens entraram, e em uma maca improvisada com paus e sacos, jazia um outro homem que ela nunca havia visto, muito ferido.

- O que aconteceu? – perguntou ela.

- Encontramos ele na estrada, parece que o roubaram e o espencaram. Não podíamos deixá-lo morrer – disse o marido.

Levaram o homem para o quarto e o colocaram na cama do casal. Na cama ao lado, a menina dormia.

O estranho tinha o rosto ensanguentado. Era jovem, musculoso, os cabelos negros caíam-lhe pela face.

A mulher apressou-se a limpar as feridas com pano e água fria. Acender o fogo no fogão a lenha naquelas circunstâncias demoraria e não seria de muita ajuda.

Os amigos do marido foram embora e o marido ficou um instante se lavando, retirando o sangue seco do corpo que pertencia ao estranho. Ele não comeu, mas estava faminto.

Pela manhã, o homem acordou. De início não se lembrou do próprio nome, mas com o tempo, dizia chamar-se Tamish, um mercador. Contou que lhe haviam roubado suas mercadorias e agradeceu mais de uma vez pelo gesto bondoso com que fora tratado pelo casal.

Ainda abatido, disse que iria embora, pois não queria dar mais despesas e mais incômodos. O homem disse que se ele precisasse ficar para melhorar por completo, pudesse ficar. A mulher não disse nada. O estranho ficou.

Com o passar da semana, a comida tornou-se mais escassa. O marido não havia conseguido o emprego e ainda voltara com um desconhecido, alguém para comer a comida e beber a agua. Eles não tinham como mantê-lo.

- Eu não posso continuar aqui – disse Tamish, certo dia, notando o olhar desolado da mulher para as panelas. – Sou um peso para vocês.

- Deus proverá – disse a mulher, forçando um sorriso. – Ajudar quem precisa sempre é recompensado por Deus.

Mas os dias se passaram e o alimento tornava-se cada vez mais escasso. O homem, depois de se recuperar, arregaçou as mangas. Andou pelas ruas da aldeia, viu crianças magras, homens que mal se mantinham de pé, mulheres sem forças para amamentar.

Tamish passou a partilhar seu conhecimento com os outros aldeões. Dizia ele que seria sua forma de agradecimento.

Junto com o marido da mulher, cultivou uma horta e produziu frutos. Abóboras, melancias, mandioca, tomates... havia de tudo. Mas Tamish queria mais. Venderam os legumes e compraram uma vaca; beberam do leite e venderam a outra parte. Com o dinheiro, compraram mais vacas, bodes, cabras e galinhas. O segundo passo foi criar uma horta comunitária.

Mas antes de tudo isto, precisou de um sistema para regar as plantações. Não havia chuva, nem sinal que um dia ela viria. Ele desviou o curso do rio, abriu valetas que faziam a água escorregar para as plantações comunitárias. No início encontrou resistência do lider da aldeia, que questionava suas intenções. Por que razão um forasteiro ajudaria uma comunidade pobre com tamanha dor de cabeça? O homem, de maças do rosto salientes, assentiu, depois de ser convencido pelo homem que ajudara o estranho.

O marido da mulher, no entanto, louvava a vida do forasteiro, bendizendo o dia em que o encontrara desacordado na floresta.

Mas Tamish fazia tudo com total alegria. A filha da mulher o adorava, e o adorava também outras mulheres. Delas, Tamish se resguardava, dizendo que tinha uma missão, e não poderia desviar-se do seu próposito.

Ele incentivou a troca de alimentos, de serviços e de mão de obra. Era uma pequena comunidade, mas começava a funcionar perfeitamente.

A mulher rezou mais uma vez, mas agora para agradecer. Aquele homem trouxera prosperidade para a aldeia, algo que não teria acontecido se o marido não o houvesse ajudado. Deus havia recompensado suas boas ações. Tamish, por outro lado, dizia ser apenas um homem com conhecimento adquirido, não havendo feito nada demais em partilhá-lo.

As barrigas dos aldeões ficaram cheias; as crianças passaram de doentes e magrelas a gordas e felizes; os homens deitavam com suas esposas e tinham filhos. Após um ano ninguém mais se lembrou dos tempos difíceis, Deus havia se lembrado deles; haviam mandado Tamish, com inteligência e força de vontade.

- Precisamos fazer uma festa – disse Tamish ao líder da aldeia. – Na minha cidade, fazemos banquetes para comemorar boas colheitas. Estou querendo partir, mas queria me despedir de todo mundo primeiro.

- É uma boa ideia – disse o homem, já encarando Tamish como uma boa pessoa, um amigo da família. – É uma pena que tenha de ir embora, mas acredito que já deve estar com saudade de casa. O que você sugere que façamos para comemorar?

- Façam algo grande, com bebidas, carne, dança e música. Agradeçam ao seu deus por tudo.

- Está bem, mas faremos em sua homenagem!

- Não é para tanto – disse Tamish, ruborizando. – Eu sou apenas um homem que quis ajudar.

- Está decidido – falou o líder, agarrando os ombros de Tamish. – Haverá uma festa em sua homenagem... Você nos trouxe prosperidade e merece ser reconhecido.

No dia da festa, tudo estava preparado. As mesas, a carne, a decoração, os vestido rendados, os cabelos penteados, as crianças limpas, os sorrisos, a música, a vida… mas Tamish desaparecera.

Pouco antes da comemoração ele fora visto entrando na floresta, com uma pequena bolsa. Quem o viu disse que ele parecia sorrir, e ainda lançou um último olhar para a aldeia.

Assim que a festa começou, no entanto, ele aparecera entre as árvores na escuridão. Seu rosto, belo e altivo, tinha os olhos vazios, indiferentes. E não estava sozinho.

Uma criatura monstruosa postava-se ao seu lado. Era grande e roliço, com escamas escuras, os braços pequenos com garras, um rabo curto. Tinha uma boca cheia de dentes protuberantes abaixo do nariz e outra boca mais horrível nas costas, que permanecia fechada, mas esgarçava-se em um sorriso sombrio.

- Já estão prontos? – perguntou a criatura.

- Não seja impaciente, Tamar – disse Tamish, olhando para o monstro, alguns centímetros mais alto que ele – Você não sabe o quão difícil foi conseguir tanta comida para nós. Demorei meses para isso. O que são algumas horas de espera?

- Odeio esperar – declarou Tamar, a voz grossa, rouca, arrastada. – Já haviamos andando por dias procurando comida, nos satisfazendo com humanos errantes nas estradas, e quando encontramos um aldeia, os habitantes estavam mais famintos que nós.

- Tivemos sorte – disse Tamish. – O motivo de não procurarmos cidades maiores é que existem exércitos armados. Encontrar uma aldeia no meio do nada foi um grande achado, mesmo que eu tenha tido de alimentá-los e engordá-los para nós.

Tamish sorria, olhando para a aldeia adiante, tão barulhenta. A comida começava a ser servida, o vinho distribuído. A mulher e o marido já deviam está na festa em sua homenagem, pensou ele. A criança também. Seriam apenas mais uma presa, nada mais. Era um negócio e tinha de ser lucrativo. Já havia feito aquilo dezenas de vezes. Apesar de não ser um mercador, realmente fora atacado antes de ser encontrado pelos homens. Estava indo para a aldeia sondar a segurança quando um ladrão o feriu. O homem o pegara desprevenido, em sua forma humana. Precisou ser curado, perdera muito sangue, já não poderia se transformar e ainda ter forças para lutar contra tantos homens.

Ele esperou, e quando percebeu que os aldões eram nada mais que sacos de ossos, resolveu alimentá-los; usou sua experiência de anos de vida para ensinar-lhes a cultivar e a conseguir água.

Não gostava de ossos, adorava carne.

- Por que ainda está nessa forma deplorável, como um humano inútil? – perguntou-lhe Tamar, observando as roupas de um colono no corpo de Tamish.

Tamish sorriu. Sua boca se projetou para fora, seus dentes tornaram-se afiados como agulhas. Ele foi crescendo, tomando a mesma forma de Tamar. Aos poucos sua pele tornou-se escamosa, seus cabelos desapareceram e ele já não era mais o mesmo.

Aquela hora, os aldeões já estariam embriagados, sem possibilidade de fuga. Os dois monstros se apressaram para fazer sua refeição. A aldeia fora escolhida, alimentada, engordada e seria devorada. Tamar e Tamish se fartariam naquela noite.

Silva Ferreira
Enviado por Silva Ferreira em 17/09/2023
Código do texto: T7887610
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