SALTO ALTO

Como explicar esse sentimento? Bem, estava inicialmente caindo. O tempo de queda normalmente seria rápido, mas aqueles segundos duravam uma completa eternidade e ali estava a observação de cada janela. Teve tempo de ver o rosto do velho do 11º andar na sacada e ainda sentir o perfume da jovem do 10º. Enquanto o vento balançava seus cabelos seus olhos se fechavam tentando respirar o ar intenso que machucava as narinas. E a dor apertava o peito como nunca apertara antes e continuava aquela queda aparentemente sem fim.

Alguns gritos já soavam lá embaixo e suas mãos apertavam num desejo de final constante. Sentia os pêlos eriçarem e passava agora pelo 8º andar onde pode ouvir o choro do recém-nascido tão comentado no prédio. E ouvia as vozes de cima, ouvia as vozes de baixo, numa completa mistura com as vozes de dentro.

Já saiam de todos os lados alguns olhares curiosos e o vento lhe dava então a sensação de liberdade. Há tanto tempo sentira-se sufocado e aquela sensação lhe permitia sentir-se feliz de uma vez por todas.

Caía, levemente caía. E abrindo os olhos via o cinza sujo do chão se aproximar. Aquele desejo de voltar começou a lhe correr nas veias, mas já era tão tarde que o único rumo era reto e chão. A dor poderia ser insuportável, mas ao mesmo tempo seria fatal e esse era o consolo. Seria rápido suficiente para ser quase indolor.

E o 4º andar passava com a velocidade mais intensa e nem mesmo conseguia-se ver o homem cansado de sempre caído no sofá vendo o jogo da tarde.

E se aproximavam os olhares fixos e aterrados formando o círculo de suspense. Alguns já derramavam algumas lágrimas falsas e outros apenas observavam. Ajuda? Tem situações que realmente não tem o que ser feito, e de qualquer modo, cada um tem o direito de escolher seu caminho e naquele instante o caminho era o solo.

E solo realmente, porque a solidão já habitava a marca vemelho-sangue futura daquela calçada.

A dor não foi tão grande como imaginara ser e seus olhos se fecharam ao sentir a quebra de cada osso seu.

O crânio se chocava em câmera lenta contra o cimento e o cheiro de sangue já descia pelas narinas. Conseguia contar os dentes soltos na boca, mas as forças se esvaíram rapidamente e deste modo sequer movia a língua.

E levemente começou a subir enquanto observava a correria daquelas pessoas desconhecidas sob seu corpo sem vida.

E lembrava-se de quanto tempo havia sonhado com a coragem para cometer tal ato e enfim procedera, agora se sentindo o maior dos covardes.

Subia com mais rapidez e ainda observava o movimento da rua. Já ouvia ao longe a sirene que chegaria tarde demais com serviços vãos.

E já, fechando os olhos sem senti-los, via os rostos amargurados da família e toda a angústia pendurada sob as cortinas da casa.

Percebeu então que as primeiras semanas seriam completamente duras e todos chorariam por perdê-lo e alguns na vizinhança comentariam.

Continuava a subir e sentar-se no ponto originário de salto e ali já via os meses seguintes com a readaptação e a correria do dia-a-dia de cada um tomando conta, onde o tempo já não sobrava para lamentações daquele que partiu, e que, aliás, decidiu partir.

Já soava em seus ouvidos comentários sobre seu destino cruel e o não perdão de Deus e já sentia o medo naquela fumaça branca em forma de corpo que depositada ao seu redor se dissipava lentamente no ambiente enquanto refletia.

E via os anos se aproximarem e todos aqueles que amava sendo felizes sem ele e sequer lembrando de sua existência passada, salvo datas comemorativas.

A dor talvez fosse maior em perceber isso do que a dor que lhe impulsionara a tal ato e então começara a tentar uma respiração profunda.

Vagarosamente se movimentava e os olhos reais então se abriam e ali estava sentado observado o fluxo da avenida, pronto para pular.

Levantou-se. Arrumou a calça e suspirou fortemente.

Aquela covardia lhe garantia uma segunda chance e então começou a caminhar pelo terraço.

Olhou novamente para o seu “quase” ponto de salto e memorou aquelas imagens tão sólidas ainda permanentes em sua mente.

Abaixou a cabeça e voltou-se para o interior do prédio deixando aquela fumaça branca arrependida sentada na borda do edifício, ainda pensando em pular e ser enfim esquecido.

E naquele dia não ocorreu nenhuma movimentação desesperada embaixo do prédio.

O bebê chorou, o perfume da garota continuou no ar e o velho ainda estava na sacada assim como o homem cansado vendo o jogo na TV. Mas não houve o pássaro sem asas tentando voar e fugir da sua realidade passando nas janelas para visitá-los e acabar colado ao chão.

Apenas entrou no prédio e sorriu um sorriso estranho, como quem se envergonhava das próprias decisões.

Se seria uma idéia fixa não pensar nisso jamais, dependeria das situações futuras.

Mas naquela tarde, não houve salto alto.