Reflexo...

Reflexo...

A manhã cinzenta chegara e a fumaça já se levantava contribuindo para a neblina negra permanecer no ambiente.

Prédios arranhavam as nuvens e as pessoas corriam pelas largas calçadas esbarrando umas nas outras sem se incomodar. O som da cidade acordava sempre os mais preguiçosos e ficar na cama até tarde para quem morava naquela avenida era quase impossível.

Na esquina da Rua Luiz Ventrini com a Avenida 15, exatamente no quarto 73 do 3º andar estava Henrique com a cabeça sob o travesseiro. Apertava a espuma, resmungava e no mesmo tempo momento já sentia as velhas lágrimas brotarem. A janela mal feita com madeira antiga deixava a luz ruim da manhã entrar e ser sempre ofuscada pelos modernos transportes que passavam por ali, pois sim, ao abrir a janela a visão era de automóveis velozes pairando no ar.

- Odeio esse século! – resmungava Henrique enquanto ajeitava de qualquer modo a sua cama dobrável. A dobrava e colocava em um canto e em seguida jogava no chão um tecido vermelho e alguns objetos.

- Vamos começar!

Abaixava a cabeça e as mãos passeavam lentamente no pano rubro e tocava então o pequeno espelho.

- Oh! Sim! – dizia sorrindo calmamente.

Levantava o espelho e piscava vendo seu próprio reflexo. Por um instante poderia se distrair vendo o efeito do tempo em sua face mas logo voltou-se para os outros objetos e então guardou todos enrolados no tecido.

Pegou então o casaco e desceu as escadas, saindo pela Rua Luiz Ventrini evitando o inferno da Avenida 15.

Caminhava lentamente e observava os pés, ainda com as mãos nos bolsos do casaco e via no chão as sombras dos automóveis voadores.

- Senhor, tem horas?

Seu olhar se voltou para os negros olhos da jovem e seu coração pulsou uma sensação nostálgica. No íntimo, sussurrava um nome conhecido e no momento os lábios alargavam-se num sorriso meigo.

- Exatamente 7:17 senhorita.

- Obrigada!

Ela saiu rapidamente, mexendo na bolsa e ele então, sem resistir, olhou para trás.

- Senhorita...

- Sim? – Ela o olhou ternamente.

- Isso lhe pertence. – retirou a mão direita do casaco mirando o espelho para a jovem.

Aqueles olhos negros belos faiscavam e fixaram-se nos verdes olhos reluzentes de Henrique e a boca dela se abria devagar.

- Como?

Ele sorriu.

- Precisava te entregar.

Ele saiu enquanto a jovem permanecia parada na larga calçada segurando o espelho. Ele, vagarosamente se distanciava retornando ao quarto 73 do 3º andar.

Sentou-se na poltrona aconchegante e fechou os olhos cansados. O sorriso novamente estampou-se e dentro daquele pensamento uma lembrança surgia.

- Eu te amei todo o tempo Carina.

- Henrique, por favor, não complique as coisas.

- Você vai mesmo se casar com ele?

- Vou Henrique, já está decidido. Não volto atrás.

- Um dia Carina, um dia eu vou...

- Não Henrique, nada de um dia. Não me procure mais, por favor. Não nesta vida.

O silêncio se fazia presente e na poltrona agora não tão confortável, o sorriso era substituído por uma lágrima dolorida que descia pela face alva. As lembranças continuavam e as mãos apertavam aos poucos.

- Tudo bem Cá! Tudo bem!

- Adeus Henrique.

- Adeus Cá! Até outra vida então...

- Henrique...

- Oi..?

- Aquelas minhas coisas que estão com você...

- Quer que eu lhe entregue? Estão comigo, embrulhadas naquele seu lenço árabe.

Carina sorria envergonhada nas lembranças de Henrique e ele acompanhava no quarto solitário.

- Não precisa. Fique com você!

- Eu vou te devolver Cá.

- Vai Henrique?

- Em outra vida, quando você me perguntar as horas.

Ela sorria e ele já chorava discretamente. Na mente dela era apenas uma loucura para animar a despedida de dois amores, mas ele bem sabia o que sentia.

- Ok Henrique. Me devolva o espelho então.

- Até outra vida então Cá, perto da esquina na entrega do espelho.

- Até Henrique.

E no quarto, continuou de um lado aquela sensação nostálgica e ele permaneceu em seu transe de recordações com o amor guardado há tanto tempo explodindo no peito.

Embaixo, na esquina, a jovem olhava o tempo marcado em seu rosto refletido no espelho.

No ambiente ainda pairava a neblina cinza contrastando com o rubro do lenço, o verde dos olhos dele e o negro olhar dela e entre os dois havia apenas uma vida inteira de distância assim como a promessa que deveria ser cumprida.