Sagas Femininas

Seline Gomes foi criada meio a muitas mulheres;caçula de cinco irmãs professoras, educação árabe e italiana,montanhas do Sul do país,uvas,frio,rigor educacional,gente corada e cheia de histórias para contar!

Seline acreditava em contos de fada ; quando menina esperava todos os dias que um príncipe loiro de olhos azulados ,como os seus, adentrasse ao ´´ palácio´´ de sua casa ,tentasse escalar as paredes através de seus longos cabelos e também lembrasse de acordá-la .

Ah! Claro, seus pés poderiam caber num sapatinho de cristal com adornos dourados!Miscigenações de historietas infantis tomavam conta da mente pueril da garotinha da montanha!

Tia Magda Estana chorava escondido as tristezas de seu casamento com tio Gaspar;ele era lindo, poeta e sedutor;características irresistíveis na atração de todas as cidades por onde passava ,vendendo os vinhos fabricados na Vinícola Estana. Ele vivia recebendo cartas,bilhetes e telefonemas;seu círculo de amizades e contatos profissionais fazia tia Magda sofrer de

´´ciúme -crônico-obsessivo´´; segundo sua irmã Clara;mãe das meninas.

Infelizmente titia abandonou as atividades na vinícola assim que os gêmeos nasceram;o que a fez piorar da ´´ tal doença´´...

A mãe de tia Magda adorava viajar com a turma da terceira idade ;sempre que estava na serra ,reunia-se com as meninas da família para contar suas histórias de 1930,suas calças compridas revolucionárias, seus cabelos curtos proibidos, sua opção por fumar e a luta para aprender a dirigir!

Claro que a mãe de Silene detestava estes círculo de contações de histórias insubmissas e agitadoras.

O Universo masculino era repleto de poder e privilégio e ausência de regalia feminina despertava nas irmãs Gomes uma revolta sem igual...Dizem que a família era mesmo destinada a ser ´´feminista´´, não fosse a submissão e pulso de Dona Clara na educação das seis filhas,as montanhas virariam palanques em prol da mulher serrana ; quiçá do Brasil!

Sempre que podiam as irmãs professoras citavam e indicavam romances e biografias de mulheres valentes,desbravadoras, como a contribuir na abertura de novos tempos literários e mentais na vida pacata das cidades camponesas.

Conheci Silene Gomes no ´´Colégio Paulistano Cruz em Silêncio´´;éramos semi-internas e nos divertíamos contando experiências e sagas familiares.

Comecei a estudar no Colégio assim que meus pais se desquitaram;não lembro o ano ,mas sei que a televisão retratava algo igual ao meu cotidiano ,num seriado vivido pela atriz Regina Duarte,´´Malu Mulher´´...

Eu e mamãe nos acocorávamos no pequeno sofá de vime e almofadas murchas para assistirmos ao programa em nossa ´´tv-bombril´´!

Toda semana trocávamos a palha de aço da antena para que nosso´´ retrato televisivo´´ pudesse ser devidamente curtido;era nosso passa-tempo preferido!

Talvez sentir-se ´´Malu Mulher´´ fosse uma forma de aliviar o peso de ser rotulada e excluída pela sociedade da época.

Papai era distribuidor de bebidas importadas.

Quando me tornei adolescente comecei a vê-lo Dom Ruan!

Logo depois de seu segundo casamento com Lili (uma de suas amantes) e do nascimento de Astolfo (seu bebê-varão), papai abriu um empório bem pertinho de casa e abandonou a vida noturna de labuta,farra e paixões.

No final da tarde tomávamos café e pão de queijo;ouvíamos juntos as histórias serranas de Silene e sua família e tínhamos momentos inesquecíveis!

Os arbustos que decoravam a calçada da rua do empório começavam a ficar multicoloridos anunciando o início da primavera ,quando conhecemos Dorothy;ela adorava bombas de chocolate e para nosso deleite estava sempre as voltas com seus rascunhos;era uma jornalista recém-formada, quarentona e

´´ pra-frentex´´.O mais interessante era a maneira de

vestir-se,usava lenços coloridos em volta da cabeça e pescoço;dizia que era costume da cultura do país onde viveu quase vinte anos; seu pai era jornalista do ´´Município Paulistano´´ ; recebeu com tristeza a volta da filha em seu lar;não pela sua presença,mas pelas circunstâncias!

Dorothy fora casada com um rapaz afegão, Nayet;assim que completou trinta e seis anos,o marido fez uma festa próximo a Herat, mas não foi para comemorar o aniversário de Dorothy , e sim para apresentar sua segunda esposa,a prima Shakiba, de apenas quinze anos.

A família comemorou euforicamente ;porque afinal Dorothy não conseguia engravidar e esta era uma ´´ falta de bênção´´.

Diziam os maledicentes que tratava-se de ´´maldição´´; pelo casamento com mulher brasileira,sem costumes e tradições consangüíneas!

Dorothy num primeiro momento ficou dividida entre a vergonha da exclusão matrimonial e o desquite;optou por voltar para a casa de seus pais,sem bens materiais ;como rezava a religiosidade de seu marido e família.

Chegando ao Brasil foi recebida pelo pai; a mãe falecera meses antes da mudança da filha para Herat.

Dorothy voltou a estudar e estava escrevendo um livro sobre a mulher afegã, castigos,punições e doçura;imaginem o deleite que era conversar e saber as sagas orientais!

Lembro-me que no mesmo ano fomos todas convidadas para nos hospedarmos na Serra Sulista.

Dona Clara nos recebeu muito bem,mas ficou ressabiada com o encontro de tia Magda e Dorothy; em contrapartida encontramos nas duas não apenas histórias, mas garra ,fé,esperança e muita coragem.

Nunca mais ouvi falar da família Gomes; tia Magda faleceu meses depois de nossa primeira visita à serra....

Este livrinho de cabeceira foi um estouro em vendas;vive no topo da lista dos ´´bestsellers´´ da revista ´´Olhe Bem´´...

´´ Para Maria Cristina Lando,fragmentos de uma vida afegã,regada de amor,luta,paixão,e desprendimento!

Sua sempre amiga, Dorothy´´...

Hoje meu nome é Maria Cristina Lando Sulivam, sou jornalista,casada e mãe de quatro meninos;melhor dizendo, rapazes!

Toda semana leio trechos de Dorothy,relembro experiências das mulheres camponesas sulistas;serro meus olhos e me acocoro nas luxuosas almofadas cor de vinho aveludadas do divã; transporto-me ao sofá de vime,almofadas murchas, ´´tv-bombril´´, ´´ Malú Mulher´´...

Mamãe ´´mudou de planeta´´, papai está adoecido;sua esposa Lili engordou e tingiu seus cachos ruivos com tinta preto-azulada, meu marido é ator ; os meninos são músicos,o Universo Masculino ainda transpira poder;mas o Feminino já fez algumas piruetas rumo à evolução!

Quem sabe um dia homens e mulheres sejam mais unidos e participativos em prol do tal ´´ mundo melhor´´;acredito que já estamos engatinhando para este fim!...

Costumo adormecer no colo dos poemas de Dorothy, ouvindo músicas clássicas e sonhando com as narrações das desbravadoras do tempo...

06/06/2008