CARTAS...APENAS CARTAS

Ah, era a quarta carta que ela tentava, e o cesto de lixo ao lado da mesa ia ganhando...

Uma luz mortiça de um abajur, não tanto um abajur era apenas uma luminária. E nesta quarta carta que tentava com a caneta em punho tão próxima do bloco, Simone ouvia e parou para ouvir melhor os que na sala pareciam assistir televisão.A penumbra do cômodo era azul, podia invadir seu espaço e tomava-lhe uma sensação de melancolia suave.

Deu um sorriso malicioso de si mesma no rosto branco e bochechudo, e absorveu um etéreo devaneio de prosseguir.

Valia a pena prosseguir. Bem no fundo de sua empresa ela se colocava banal no que fazia.E tinha a sã consciência de que mesmo que fosse banal tinha que se impor na seriedade daquilo.

Ouvia um martelinho na cabeça: para quê, para quê...

Era afinal uma desculpa tão banal quanto a sua empresa. Ignorou um tempo, não tomando conhecimento que ignorara algo importante.

Podia-se valer de seu futuro? E se pensar em futuro tudo terminava em muito O no final.

Ria por dentro e isto se refletiu por fora com as mãos trêmulas demais para continuar escrevendo.

Em aspecto de esplendor lembrou-se que uma carta era um ensaio, e se escrevesse muita, de forma garbosa e circunlóquia poderia publicar um volume e até concorrer à Academia Brasileira de Letras.

Deram um grito lá na sala, e ela podia ter posto a perder todo papel se tivesse começado a escrever. O grito não fora de alguém na sala, fora dentro da tevê.Novela ou filme não sabia ela o que era.Nem ao menos se o grito fora de dor ou de pavor.

Como se começava uma carta? E entre tantas possibilidades, coçando a esta com o traseiro da caneta, pensou naquele modelo chulo e ultrapassado: “... e por estas mal traçadas linhas...”.

E lembrou que a primeira que tentara fora bem para este lado: “... sei que faço mal em escrever estas linhas...”.

Rasgou e embolou tudo num nó só que foi para o cesto ao seu lado. Fora bem depois que teve a consciência do que estava escrevendo.

E agora pensava: tudo era uma tentativa feroz de ironizar a si mesma, já que se ironizando ironizava logo assim de antemão tudo, evitando surpresas posteriores e mesmo possíveis.

Ficou tentada novamente pela mesma excelentíssima idéia de ir para o lado: “... Aos cuidados do mais carinhoso...”.

Mexeu os pés, descalçando os chinelinhos de pano, embaixo da mesa. Fez um gesto de que ia abandonar a caneta em cima do bloco, mas voltou a posição de sentido: a caneta como lança de um guerreiro.

Havia tentado de uma forma assim: “... Ao que só amei até então e não sou digna...”.

Fatal, ingênuo, porém o pior era o “então”. Então de quê? Podia-se aliviar logo a outra possível e quem sabe melhor oportunidade? O melhor foi fazer um bolo de papel e jogar no cesto.

Quando viu já estava escrevendo, é que tinha destes impulsos: “... Não agüento mais segurar isto...”.

“Isso” o quê? Não sabia bem, escrevera sem a ação do pensamento, por impulso: emoção.

Era sério o que empreitava, embora explodisse por dentro num riso fútil.

Pensou em continuar deste jeito, se tinha que sair algo, que saísse de forma natural. Todavia o continuar fora infeliz devido as vulgaridades que saiam como relâmpagos de sua mente.

Levou ao alcance da vista o que havia escrito: Achou tudo – com a licença da palavra – uma bosta!

Numa gargalhada por dentro explodiu o ímpeto e tudo embolou numa bola de papel ao cesto.

O cesto, o cesto – o olhando de viés era dramático o cesto ali estava justamente...

Simone descobriu-se a inventora do seu próprio fracasso. ela já contava com ele antes de começar a sua empresa.

Agora conversavam baixinho na tevê, porque se ouvia um ronco alto de quem cochilava.

Teria que começar tudo de novo. Se pudesse ser por telefone, mas acontecia de ligar e não conseguir dizer nada, e a pessoa do outro lado da linha se cansar e bater o telefone na sua cara.

O sono de repente a salvaria no que adiaria... E o sono não existia, nem podia existir, era tanta a ansiedade.Uma asfixia, às vezes, no silêncio concuspiciente do quarto.

Como temos pecados – pensava sem enxergar no escuro. E assim era quase pura.virgem até.

Empenhava-se como uma artista ou um guerreiro. Era segredo, porém era este o único momento feliz de verdade no decorrer dos dias de vida.

Então teve uma idéia – era possível! – uma saída para então: “... Escrevo-te porque tenho tido dias tão vazios sem você...”.

Saiu então lindo, esplêndido. Ouviu, ao mesmo tempo que gritava por dentro, um alvoroço de dentro da televisão.Era como se os personagens da televisão estivessem a fazer troça com os que assistiam.

Ela, Simone já estava fortemente empenhada e o raciocínio não saía do que escrevia. Agora deixava de ser banal, e se tornava algo tão forte, sério, que ela carregava em semânticas: “...Estou plena de amar-te...”

Tinha certo irônico, no canto da boca, para não quebrar o desencanto possível mais tarde (era remediada).

E amanhã, ah amanhã que dia quase impossível hoje – agora – depois que ela não se demoveria mais de sua decisão.

Havia exageros permitidos e fatais: “...Arranco-me do meu próprio coração sem o teu para mim...”

Divertiu-se...e tornava-se um momento intenso, denso, compensador.Já sabia que seria apenas aquele momento, ele seria fugidio.O aproveitava no máximo.

Tudo pareceu silenciar ao seu redor, e era como se apenas ela e o que escrevia, e até então fosse que nem tivesse destinatário.

Flutuava tudo etéreo como o ar transparente em bolhas.

Permitiu-se chegar, porque admitira afinal um sentimento, e todo sentimento por mais mero que seja é um estado ínfimo.E Simone resumia toda sua vida neste momento, e colocando empenho no que a punho dirigia.

Satisfeita terminou tudo com um ponto final bem reforçado, e olhou para o tudo sorrindo.

Aconteceu da luz do dia seguinte.Ela ansiou por esta luz numa sofreguidão na cama, e nem a cama descansou.Mas de toda sua fisionomia não havia vestígios de cansaço, e era toda sinal de contentamento.

Simone transpareceu alegre vestida numa jardineira ao meio do dia claro e amarelo: alegre o dia.E o envelope, grande e de contorno auriverde, no bolso grande de sua jardineira.

Os inúmeros transeuntes da Rua Do Meio a reconheciam pelo perfume dos seus cabelos: era o xampu, o mesmo sempre.

Ela se inibia com medo que percebessem a sua alegria.

As lojinhas se amontoavam tão próxima as barraquinhas dos camelôs, e tudo era quente e branco de paz e com preensão, que na porta da sapataria o rapaz acudiu o caderninho que voou ao vento, da banqueta da moça, que agradeceu com um pejo arrefecido.

Simone era uma estrela a mais num universo pequeno e quente de “entendimento”, e corria com medo de ser muito notada.

Na agência do correio se viu um “objeto” central.E o sorriso da atendente pareceu-lhe um sorriso de quem prediz o que sabe.Hesitou em entrega-la o envelope, e esta como tola parecia tentar pegá-lo à força.

Os que aguardavam na fila riam sem entender,e logo a atendente também riu, mas riu fraca, se vendo pega de surpresa.E Simone casmurra, rosto rubro um pejo denso não podia se compreender e assim não compreendia os outros.Enxergava ironia.

-Não! Deu um berro recuando definitivamente.

Todos riram tensos, a atendente murchou e para sua própria infelicidade – sem saber – riu desengonçada.

-você vai ler! Acusou Simone levando a carta ao seio protegedoramente.

-Não, não posso – deixou escapara sem saber por que a moça.

Todos seguravam as gargalhadas, incompreensíveis, daquele momento.A atendente voltou a estender a mão para Simone num riso parvo e incompreensível de quem quer que fosse.

Simone chegou a estender novamente, aflita embora , só que notou – porque a moça deixou escapar sem saber por que – um riso que Simone viu como um riso de zombaria, de deboche, de pesada ironia, e foi que louca – e como louca – recuou de vez, explosiva e irada fazendo a carta em pedaços – e quase explodiu em gargalhadas – mas ela jogou os pedaços da carta rasgada no cesto junto a porta de vidro da entrada, onde foi deixando quase, ofegante, se não fosse lembrar...

“Ela vai, vai catar os pedacinhos e ler quando juntá-los, ou ela ou qualquer um daqueles...”

Voltou atrás se jogando doida dentro do cesto enorme de lixo da agência do correio, catando sôfrega os pedacinhos da carta.

Assim se expôs sem o conhecimento...