Caminhos da morte

Era meia noite. Flaviano estava deitado no sofá da sala olhando ainda para o aparelho de televisão. Tinha sua cabeça recostada no colo da mãe que acabara de chegar do interior para cuidar do filho doente.

O apartamento era simples demais. O edifício, um caixão desbotado dividia três ou mais porções de lama. Havia um lixão próximo ao condomínio. O mau cheiro era insuportável. Urubus viviam em festa. Apenas uma luz magra simulava brilho à janela da frente do apartamento.

-Tive tanto, mãe, desperdicei tudo. Hoje, doente e miserável, só seu colo tenho. Ai de mim se não tivesse. Nada mais restaria. Não há dinheiro fácil. A promiscuidade deslimita os desejos, e a vontade de pecar nos faz avançar contra ondas e mares revoltos. Depois, cadê praia? É só inferno e onda, mar e fuga, ilusão, ilusão, ilusão.

-Seu remédio, filho, tome-o.

-Pra quê, mãe? Não me adiantará mais de nada.

-Tome-o, fará bem.

Ele havia saído de casa, vítima do desemprego da cidade grande e deu-se pra valer de um subemprego amoral aos costumes da época: passou a vender seu corpo e, com o dinheiro do ofício, luxar. As folias mansas acabaram até ele tê-la como amante; esposa de Senador, mesmo anônimo, é duro páreo e o fora assim. Quando não mais a quis, teve sua vida rodeada de infernos. Contaminou-se com o vírus da AIDS e gastou com a cabeça tudo o que havia conseguido com o sexo.

Naquela meia-noite morreu no colo da mãe. Chorava silencioso. Choro de raras lágrimas. O corpo murcho, seco de tudo. Olhou-a querendo ficar e disse-lhe:

-Mãe, só o seu amor não me sai de perto da alma. Você é gloriosa, santa.

-Feche os olhos, durma, meu filho...

-Não posso. Quero ver os seus acesos, pelos meus. Deixe-me vê-la nestes últimos instantes que terei.

-Eles são muito preciosos para mim...

-Não fale assim. Você vai ficar bom.

-Dentro do seu coração, mãe, nunca estive doente, não é mesmo?

E a voz quase inaudível se ia. Distanciava-se da vida. Dona Cândida alisava-lhe a fronte com as pontas dos dedos. Pele e osso existiam cobrindo a alma do jovem vencido pela vida. A televisão continuava ligada. Sua irmã, Marta, rezava o terço aos pés da cama. Os festejos do réveillon enchiam a tela do televisor. As mãos de Flaviano tentavam sem sucesso apertar as da mãe. A morte sórdida sorria para o tempo daquele instante tão fugaz.

-Adeus mãe, feliz ano novo, vou embora para outro lugar.

-Vá para o céu, meu filho. Jesus o acompanhe.

-Sua benção, mãe...

-Deus o faça por mim, meu filho..., descanse.

Sua cabeça, de tão magra, nem tombou. Já estava sob a mão, direita de sua mãe. Seus olhos fechavam-se para um sofrimento duradouro. A vida continuou gravando os desastres que os desejos e necessidades nos oferecem, certas vezes, quando temos que sobreviver. O tempo registra inclemente tudo. O homem continua a lançar-se ao ímpeto de seus desejos, os mais fortes, vezes temidos. Sobrevive-se à queda de um serzinho tão frágil, nos cai da materialização de um desejo incrustado na carne sedenta. Tudo passa. A onda sobe e desce. A morte leva e não mais traz. Uma história pequenina pode nos dizer acerca de um grande sofrimento acontecido em um ontem não tão distante.