Letras de um Livro e seu destino

– Olha ela vem em minha direção! Hoje saio daqui! – Disse sorridente o pequenino, ao ver uma moça morena se aproximando.

Era uma estante bem movimentada, a mais visitada daquela biblioteca, os Livros dela eram muito emprestados, assim quando paravam lá, contavam e comentavam suas aventuras com os donos temporários. Somente um nunca era emprestado ou lido, ficava próximo à parede, era o último da prateleira, ficava recostado ao bibliocanto, que lhe impedia de cair com seu rosto virado para baixo.

Seu nome era Capinha, apelidado pelos outros Livros, de “o encostado”, pois só havia sido emprestado uma única vez e fora devolvido no mesmo dia. Diferente dos outros, ele não possuía comédia ou aventuras, não tinha rosto colorido, possuía apenas duas cores e escuras, outro motivo de piada e desprezo para os outros, era verde escuro com suas letras em azul marinho e não possuía marcas, manchas e rasuras em suas páginas, apesar de ser antigo.

Capinha escutava em silêncio as risadas debochadas dos Livros que saíam da prateleira para serem lidos e emprestados, ou mesmo os comentários zombeteiros e maliciosos dos que ficavam. Mas não se abatia, observava fixamente o relógio pendurado na parede, à sua frente, que refletia em seu vidro a entrada das estantes, permitindo ver quem vinha no corredor, sempre esperançoso de que alguém o veria, o tiraria da estante e o emprestaria por um bom tempo.

Então num sábado de uma tempestade violenta, ele olhava o relógio atento, na expectativa que alguém fosse à biblioteca naquele dia chuvoso, as luzes se apagaram, por alguns segundos, e quando se acenderam, ele viu o vulto de uma menina entrar em seu corredor. Capinha não conteve a alegria e, sem nem mesmo saber se ela iria até o fim do corredor e o acharia, gritou animado:

– Olha ela vem em minha direção! Hoje saio daqui!

Os outros se recuperaram do susto e riram num uníssono deboche escancarado, certos de que jamais veriam nele algum atrativo de boa leitura. – Até parece! Se em dia normal ninguém te quer, não será hoje, em dia de temporal, que vão querer! – comentavam entre si e com os Livros das prateleiras vizinhas, que ouviram o grito empolgado dele e acompanhavam atentos a garota, que parecia está em uma exposição de jóias.

Caminhando lentamente, ela ultrapassava cada prateleira, com a mão esquerda esfregando o queixo, como se procurasse um prêmio ou uma pérola rara no oceano. Observava as capas, já tão acostumada a ver, coloridas, múltiplas, atrativas e fantasiosas, porém não pegava nenhum Livro. Apenas passava o dedo indicador pela lateral de cada um deles, dos mais finos aos mais espessos, dos menorezinhos aos que tocavam a parte superior da prateleira, olhava todos com carinho, por segundos, só o tempo de ler o título e o nome do autor.

Surpreendendo a todos, que cochichavam alvoroçados, ela foi até o fim do corredor, olhando em todas as direções, e percebeu haver um Livro em toda a estante do seu lado esquerdo, que era diferente dos outros, parecia até uma folha murcha e velha no meio de um jardim recentemente florido. Surpresa, e sem dificuldade, ela o pegou desconfiada:

– Hum! Você deve está na prateleira errada, não mocinho? Fugiu de sua estante foi? – Perguntou como se conversasse com uma criança que acabara de fugir da creche. Ela o folheou, atenta a sua letra diferente, letras cujas foram datilografadas. – Mas que letra estranha você tem! – E sentou-se no chão a folheá-lo com curiosidade. Neste momento ela não sabia, mas haviam dezenas de Livros espantados com a cena, mas ela só escutava o barulho da chuva meio longe e o som das folhas amareladas roçando uma nas outras e em seus dedos cuidadosos.

Quanto mais folheava, mais se interessava pelo Livro diferente. Então em um movimento espontâneo e rápido, ela o levou próximo ao nariz e o cheirou delicadamente, como se segurasse um frasco de perfume, com essência nova. Neste exato momento todos os Livros espantadíssimos, se alvoroçaram novamente:

– O que é isso? Ela o está cheirando! – Disse um Livro grande, assustado.

– Ninguém cheira Livros, muito menos, velhos! – Disse um menor, esnobe.

– Como ela pode nos desprezar e fazer isso com “o encostado”, ele nem é desse século! – Disse o fininho da prateleira superior, arrogante.

E todos falavam ao mesmo tempo, não acreditavam naquela situação, estavam inconformados e até ofendidos com aquilo. A menina continuava a explorar o Livro, e ler pequenos trechos rapidamente. De repente ela se levanta e abraçada com Capinha, vai embora, todos observam, através do reflexo no vidro do relógio e, neste momento, ainda incrédulos, os Livros se calam. Então um deles, o mais atual da estante, afirma o óbvio, que foi sufocado pela inveja e pelo orgulho:

– Ela vai emprestar o Capinha! Dá para acreditar que ele finalmente saiu da Biblioteca? –Falou num tom sério e compassado. Mas todos os outros permaneceram em silêncio. Pensavam na garota e em como ela levara apenas o Capinha, num dia de chuva e desértico da biblioteca, imaginavam como seria quando “o encostado” voltasse a estante.

A garota emprestou o Capinha, e o renovou por mais duas vezes. Passaram-se semanas e ele não voltava ao seu corredor, todos comentavam, questionavam e criavam teorias sobre o desaparecimento do Livro mais velho e esquecido da estante, mas que agora era o mais lembrado em todos os diálogos das prateleiras vizinhas. Então na sexta-feira, o funcionário da biblioteca veio devolvê-lo à prateleira, um momento de puro espanto nas duas estantes, todos queriam fazer mil perguntas, mas ninguém queria parecer interessado.

– O que aconteceu Capinha? – Falou o Livro mais colorido, não contendo a curiosidade e quebrando o silêncio. Mas nenhuma palavra obteve em resposta. Capinha permaneceu virado para a parede, mudo. A noite inteira, todos o questionavam curiosos, sem obter resposta dele. Na tarde do dia seguinte, novamente sábado, a garota voltou ao corredor e quando ela entrava, Capinha falou, dissipando a angústia de todos e como se fosse a última coisa que diria ali:

– O pai dela é rico e colecionador de Livros, ela me pediu a ele como presente de aniversário, e ele negociou com a biblioteca para me comprar, fez uma doação de muitos Livros! Ele dá todos os Livros que ela quer! – Todos estavam calados e atentos ao que o “ex-encostado” dizia. – Vou para uma estante só minha, perto de outros como eu! – Calou-se por um momento. – Ela veio me buscar agora! Apesar de tudo foi muito bom conhecê-los e dividir este corredor com vocês! – Despediu-se, com um sorriso sincero, ao ser pego cuidadosamente pela garota.

Capinha nunca mais voltou. A garota tornou-se uma escritora, não o queria só para colecioná-lo, ela escreveu um Livro, inspirado em Capinha, que ficou muito famoso, e que possuía a seguinte dedicatória principal, mais tarde lida pelos velhos companheiros de estante, quando o Livro dela chegou à biblioteca:

Dedico este Livro ao meu amado Pai (meu grande Amigo) e ao melhor Livro que já li em toda minha vida (o que tem a “Capinha” mais linda do mundo!), seu nome: “O mais Sábio é Paciente”.

Pri Rocha Sánchez
Enviado por Pri Rocha Sánchez em 15/06/2008
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