O menino endemoninhado

– Com licença, diretora.

– Sim, professora.

– Estou trazendo aqui o Emílio pra senhora dar um jeito nele. Esse menino anda muito desaforado. Imagina que ele estava conversando com outros colegas de novo enquanto eu dava minha aula. Irritei-me com ele e chamei-o de endemoninhado. E sabe o que ele fez? Diz para a diretora, Emílio.

– Eu agradeci o elogio, diretora.

– Imagina que desaforo!

– Emílio, você sabe o que quer dizer isso que a sua professora lhe chamou?

– Sei.

– E é isso o que você é, um menininho cheio de diabos que não amam a Deus dentro do seu coraçãozinho?

– Olha, diretora, você perguntou se eu sei o que queria dizer “endemoninhado”, e eu disse que sabia, mas o que tem isso a ver com a falta de Deus? Acho que é a senhora quem não sabe o que quer dizer “endemoninhado”.

– Que absurdo! Este menino é mesmo um desaforado.

– Eu não disse, diretora?

– “Endemoninhado”, do grego “Daimonizomai”, diretora, que significa estar cheio de deuses, cheio de gênios. Na Grécia antiga, as pessoas inspiradas, criativas, cheias de imaginação, pensadoras, eram consideradas cheias de inspiração, cheias de deuses, elas eram declaradas em estado de Daimonizomai. Portanto, chamar-me de endemoninhado para mim é um elogio. Realmente, eu adoro pensar, imaginar coisas, perguntar, duvidar. Como diziam os antigos filósofos, sim, eu estou cheio de demônios. Mas aos diabos a que a senhora se refere, diretora, não passam de um erro vulgar de tradução, que se transformou em uma péssima tradição conservadora. Ah, então deve ser por essa confusão que a professora é tão desanimada: ela tem medo dos demônios!

– Emílio! Eu não sei de onde você tira essas idéias.

– Com certeza não é das aulas da professora. E nem sei como poderia. É uma aula tão desinteressante, que o que me resta a fazer é conversar com meus colegas, para trocar idéias e discutir outros assuntos.

– Ah, é assim? As minhas aulas são desinteressantes?

– Eu sinto muito, professora, mas são sim. Imagine você então, diretora, a se prestar a uma aula do tipo: “O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cáá...?”-“...Braaal!”, “No ano de mil e quíí...?”-“...Nheeentos!”, “A vinte e dois de áá...?”-“...Briiil!”.

– Isso é uma técnica de aprendizado, coisas que você não entende.

– Realmente eu não entendo, mas acho que essas aulas nos infanti...lííízam, e nos levam para a quinta série com o intelecto de um semi-analfáá... béééto, com um raciocínio muito limi... tááádo.

– Viu, diretora? Está vendo? É por isso que eu não agüento esse pestinha na minha sala de aula.

– Calma, professora. Emílio, a partir de hoje você promete se comportar nas aulas da professora?

– A me comportar de qual jeito?

– Ora, do jeito correto, quietinho, sem conversa, prestando atenção na aula, sem causar discussões.

– Ah...! Então você quer que eu seja um anjinho e não um demoniozinho!

– Isso!! Isso!! Muito bem! Enfim! E então, você promete...?

– Não vai dar, não.

– Ora! Como não vai dar, Emílio?!

– Diretora, se isso aqui fosse um lugar de expulsar os demônios não seria uma escola, seria uma igreja, não é mesmo?

– Ai, minha nossa! Olha, Emílio, eu peço desculpas, tá? Eu não quis te chamar de endemoninhado, danoninho, gregomia, sei lá. Eu retiro o que disse. Você não é um endemoninhado. Não vamos mais entrar neste assunto, está bem?

– Ah, não, professora. A senhora me reconhece e depois me desconsidera! Agora não tem mais volta! Fato é fato.

– E o que a gente faz com você, então, seu... seu... seu rebeldezinho?!

– Hmm, rebelde? Eu?!... Já sei, então!

– Sabe?! Então diga, menino!

– Eu quero estudar com outra professora.

– Ótima idéia! O que acha professora?

– Acho um alívio...!

– Mas com qual professora você quer ter aula, afinal?

– Ah, com a professora Ariadne.

– Com a Ariadne?! Por que justo ela?

– É que uma vez, no recreio, passando pelo corredor, ouvi você reclamando com umas professoras que a professora Ariadne dá umas aulas diferentes, e que ela é muito rebelde!...

– Shhh! Menino atrevido! Não me repita isso! Está bem! Está bem! Você vai pra turma da Ariadne, mas não me venha com essa conversa de novo, hen!

– Claro, diretora, assim como você falou pras professoras àquele dia: o assunto morre aqui.

– Ora, seu... seu...

– Endemoninhado, diretora?

– Sim!!

– Ah, obrigado.

– Chispa daqui!! Professora, pode levá-lo pra turma da Ariadne, que depois eu acerto os detalhes na secretaria.

– Obrigada, e com licença.

– Pois, não?

– Ô, Ariadne, vim te trazer um presentinho, o Emílio. A diretora está passando ele pra sua turma, tá? Ó, Emílio, comporte-se bem... Quero dizer, boa sorte. Agora, com licença, tenho que voltar para minha turma. Tchau, Ariadne.

– Até mais. E quanto a você, seja bem-vindo, Emílio.

– Obrigado. Professora Ariadne, a senhora poderia...?

– Senhora, não: Você.

– É. Você poderia contar pra gente, hoje, a história do Édipo Rei?

– Claro, Emílio. Agora vai se sentar, seu diabinho.

– Ora, obrigado, professora!

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 16/06/2008
Reeditado em 09/03/2023
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