...Aldebarã

Entrei na célula 94 do Manicômio Judiciário.

O demente não pareceu notar a minha entrada: estava com os olhos fixos no céu, tocava harpa nas grades da janela e cantava a mais exótica e estranha canção que já ouvi. Era uma extravagante melodia, que tomava um cunho surrealista, cantada naquela voz de baixo profundo.

Era um rapaz de seus trinta anos, estatura mediana, franzino, pálido, cabeça grande e queixo proeminente. Tinha a testa recuada e cabelos escassos. Por baixo das sobrancelhas negras e espessas, brilhava um olhar profundo e inteligente, ainda que patético. O nariz, curto e recurvado, dava-lhe ao rosto uma expressão feroz, avivada pelos lábios finos e duros.

Enquanto cantava, estive parado à porta; meus olhos correram o modesto aposento. A cama de ferro, a tosca mesa e o banquinho capenga eram todo o mobiliário. Sobre a mesa, uma enorme quantidade de papeis; numa das paredes caiadas de branco, um crucifixo e um desenho a carvão, representando uma espécie de constelação, da qual sobressaía uma estrela de grandes proporções. Na outra parede, também a carvão, um pequeno poema em estilo modernista.

Terminada a canção, o jovem lançou em volta um olhar altivo e me viu. Olhou-me então, fixamente, e veio se aproximando devagar...

-- Outro médico, para me examinar! -- Disse ele, com um sorriso triste. -- Isso acontece todos os dias!...

-- Não, não sou médico, meu amigo!. Vim, apenas, conversar um pouco...

-- Hum! Todos dizem o mesmo!... Está bem... vamos conversar!... Sente-se aqui, por favor...

E, com um gesto, indicou-me o tamborete.

Ficamos ambos em silêncio, por alguns minutos. De repente, voltou-se num movimento brusco:

-- Diga uma coisa: eu tenho cara de louco?...

-- Absolutamente! Eu...

-- É, mas todos afirmam que sou louco!... Só não me revolto porque, pelo menos, tenho aqui sossego para escrever!... veja!...

E mostrou-me os papeis espalhados sobre a mesa.

-- E que escreve o meu amigo? -- Perguntei.

-- Versos... divagações...

-- Ah!... É poeta!?...

-- Sou... e não sou!... Depende da interpretação... Se o senhor quisesse ouvir a minha história...

-- Ah! O amigo tem uma história!?...

-- E quem não a tem?... A história de um homem é a história de todos os homens: um sofrimento mais ou menos intenso, mais ou menos longo, mais ou menos doloroso...

Parou de falar e, por alguns segundos, olhou vagamente para o Cristo suspenso na parede. Depois, como que acordando subitamente, apontou-me, com gesto dramático, o desenho a carvão:

-- Olhe para a parede Está vendo aquela constelação? É o "Touro"! Repare no olho, aquela estrela grande: a estrela Aldebarã!... O senhor, decerto, não conhece a lenda do aparecimento dessa estrela!?...

-- É verdade, não a conheço...

-- Pois é a seguinte: há muitos e muitos anos, num país muito distante, um jovem poeta, de origem humilde, chamado Aldebarã, tomou-se de amores por uma princesa de rara formosura. Esse amor, embora correspondido, era considerado proibido e criminoso, razão das mais fortes para que o moço fosse condenado à morte. Um sorriso triste e resignado foi o seu último adeus à vida e seus encantos...

Naquela mesma noite, os sábios astrônomos verificaram o aparecimento de mais uma estrela... A bela princesa, julgando ver, no intenso brilho do astro, o sorriso do seu amado, exclamou, comovida:

-- Essa estrela há de chamar-se Aldebarã!

O louco parou de falar.

Quedei-me pensativo, sem saber onde queria chegar o meu narrador. Seria sua alucinação a de julgar-se o tal poeta antigo?

-- Estou adivinhando a sua surpresa!... -- continuou ele. -- O senhor deve estar tentando compreender como vim parar aqui, num hospício moderno, eu, um poeta morto num país distante, há tantos e tantos anos!... Mas não se preocupe! Eu explicarei!...

Minha existência estelar, aquela vida brilhante de astro de primeira grandeza, não me agradava. Eu queria voltar à Terra: queria gozar , novamente, o voluptuoso sofrimento de ser Homem!...

Havia, no Mundo, neste Mundo moderno, um rapaz simples, que estudava Leis. Todos consideravam-no um gênio, embora ele nada mais fosse que um modesto talento. Chamava-se Miguel.

Um dia -- triste dia -- conheceu Marlene.

Era uma esplêndida morena de olhos negros e vivos; tinha, contudo, um defeito imperdoável: ser mulher!...

Mas era linda... e ele amava a Beleza!...

Marlene, ao que parecia, não lhe era indiferente; creio, mesmo, que o amava. Não, decerto, pelo seu físico, -- ele sempre fora feio -- mas pelas belas coisas que lhe dizia, pelos lindos versos que lhe dedicava e que eram a sua própria alma traduzida em letras, em palavras, em frases, em poemas...

Nada direi das juras que trocavam... não falarei dos projetos que faziam...

Tudo na vida, meu senhor, tem o seu fim...

E a felicidade do pobre moço teve, também, que terminar: Marlene preferiu um outro rapaz que, só fisicamente, era superior a Miguel!... Mas, que quer? As mulheres são assim mesmo! Preferem aquilo que lhes impressiona a vista... e o rival do futuro advogado era, realmente, algo que impressionava pela correção de suas linhas, pela majestosidade do seu porte, pela elegância de suas atitudes...

As mulheres... oh, as mulheres!!!... Ah! se eu pudesse castigá-las, a todas, pelo crime de uma só!!!...

Sabe, senhor? Quando a gente é preterido por outro homem evidentemente inferior, há um alívio no ciúme; e a vingança é um sorriso de desprezo... Mas quando o rival tem alguma superioridade, como a elegância, a graça, a beleza, então a tortura não tem limites: e há um inferno em nosso peito!...

E foi esse inferno que torturou o pobre Miguel, quando Marlene lhe foi dizer o que ele já desconfiava, mas teimava em não querer acreditar.

-- Miguel, -- disse ela, -- tenho uma coisa importante a lhe dizer...

-- Diga, meu amor! -- Respondeu ele, -- Tudo o que você fala vai direto ao meu coração!...

-- Sei disso, Miguel! Essa é a razão por que temo dizê-lo...

-- Será tão grave assim? Você parece tão embaraçada! Fale, querida!

Ela gaguejou um pouco... as lágrimas, incontidas, rolaram-lhe pelas faces... os soluços, a custo reprimidos, surgiram incontroláveis...

Miguel teve um sobressalto, vendo que Marlene estava, realmente, embaraçada. Ocultou, entretanto, seu desassossego, tentando gracejar:

-- Que é isso, meu amor? É tão difícil assim, de dizer? Será, por acaso que você... já não me ama?!...

Os soluços continuaram, cada vez mais irreprimíveis...

-- Diga, Marlene! É verdade?...

Marlene continuava chorando.

De repente, num gesto de suprema decisão, ela levantou a cabeça, como que num desafio:

-- É verdade, Miguel: já não o amo!... Creio, mesmo, que nunca o amei... O que senti por você foi uma espécie de entusiasmo pela sua inteligência, nada mais!... Agora, porém, verifiquei que meu coração, minha alma, minha vida pertencem a outro homem, a quem amo, verdadeiramente!...

Ódio! Ódio surdo, incontido! Ódio que só se aplaca com sangue!... Ódio que só acaba com a morte!...

Atordoado com a confissão da noiva, o nosso infeliz estudante caminhou para casa.

Durante o trajeto, havia um vulcão de pensamentos confusos em seu atormentado cérebro.

Uma idéia, contudo, permanecia fixa, na tempestade interior que o abalava:

-- Miserável!!!... Não! Não é possível!!! Mas... é!... É verdade!!!... E por quê, meu Deus?... Por quê?... Por quê?... Ah! Mas eles me pagam! ELA me paga!... Isso não fica assim!... Ela não será minha... não será de mais ninguém!... Há de pertencer-me na Eternidade!...

Ir em casa, apanhar um revólver e voltar, foi obra de poucos minutos.

Na residência de Marlene, o criado introduziu-o na sala de visitas.

Ela estava só e tocava, ao piano, uma valsa qualquer de Chopin.

Miguel não lhe deu tempo: sem dizer palavra, tirou a arma do bolso.

Teve tempo de ver, antes de dar ao gatilho, um olhar de terror... teve tempo de ouvir um grito de aflição: -- Meu Deus!...

Ainda não se dissipara o fumo, ainda não se perdera o eco, quando um segundo tiro soou: Miguel metera uma bala na cabeça!...

A Morte! A estranha e excitante sensação da Morte! Uma escuridão profunda, um amargo na boca, um embalo no corpo, um zumbir de mil insetos...Depois... o silêncio... escuridão!!!... Escuridão? -- Não! -- Que luz é aquela? -- Ah! É uma estrela... E está sorrindo? --Sim! Um sorriso pálido, como o seu brilho... um sorriso que vai aumentando... aumentando... até estalar numa gargalhada de luz!...

Sim, era eu! Eu, Aldebarã... Eu, a estrela!... Eu, que o arrebatei, antes que se perdesse pelos espaços sem fim!...

Que surpresa, para ele!...

-- Oh! Quem é você? -- Perguntou-me.

-- Quem sou eu?! Ah! Ah! Ah!... Quem sou eu!... Eu sou Aldebarã, a estrela! Aldebarã, o poeta!... Ou melhor, Aldebarã, uma estrela que foi poeta!!!... Estás admirado? É a Lei! Uma lei muito antiga: a da Transformação Universal!... Tu serás, também, uma estrela... uma estrela qualquer, humilde e sem nome, perdida no Universo!...

-- Melhor assim! -- Exclamou. -- Pelo menos, não sofrerei!...

-- Não sofrerás?!... Não sofrerás dores físicas! Mas terás, como tenho, o irresistível desejo de voltar ao Mundo!...

-- Isso nunca! Saí da vida porque quis! Jamais voltaria!...

-- Tens absoluta certeza, absoluta convicção do que estás dizendo? Não queres, mesmo, voltar?

-- Estou certíssimo de que não quero!

-- Olha que depois será tarde!...

Ele quase se enfureceu:

-- Não quero voltar!!!

-- Pois eu quero! -- Disse eu. -- Escuta: vamos fazer um trato: tu serias, aqui, uma insignificante e esquecida estrela... Ao invés disso, vê o que te proponho: tu serás Aldebarã! Ficas no meu lugar!... Queres?...

-- Para mim, tanto faz!... Mas... e você?

-- Pois não compreendes? -- Eu voltarei à Terra; usarei o teu corpo!...

-- Meu corpo está morto!

-- Quem sabe? --tu querias morrer, ao passo que eu terei vontade de viver! Talvez o corpo reaja...

-- Talvez... mas, e se não reagir? Você não poderá voltar a ser Aldebarã, uma vez que ocupei o seu lugar...

-- Não importa! Correrei o risco! Queres?

-- Está bem! Eu já disse que, para mim, tanto faz!...

-- Então, adeus!... Não há tempo a perder!

E foi assim que Miguel e eu trocamos de vida... -- ou de morte... -- Ele passou a ser a estrela, em meu lugar, e eu...voltei a ser Homem!!!...

Logo que abri os olhos, compreendi a gravidade da minha situação. As dores que me torturavam, mostravam-me o desesperado estado de minha cabeça...

Mas... --coisa estranha -- eu não estava bem certo da minha identidade!... Será que eu era, mesmo, Aldebarã?... Ou era Miguel, vítima de uma alucinação?...

Ah! Ali estava aquela mulher... Pobre mulher!... Com que carinho, com que sentimento me abraçava, chorando e dizendo:

-- Meu filho, meu querido filho!... Por que fez isso, meu filho?...

Pobre mulher!... Como devia estar sofrendo!... Tive ímpetos de contar-lhe tudo... Mas... Não! Ela sofreria mais!... Era melhor que eu a consolasse ou, pelo menos, tentasse consolá-la! Era melhor que eu a chamasse "mamãe"... Mamãe! Como soava estranho!... Mamãe... Mamãe!...

Quantos meses, quantos anos passei no hospital? -- Sei lá!... Só sei que quando saí, fui levado ao Tribunal...

Assassino!... Assassinato!... Sim, assassinato!... E tentativa de suicídio!!!...

Que estava dizendo aquele homem? Alucinação?!... Privação de sentidos?!... Ah, sim! Era o advogado! Ele estava tentando defender o pobre Miguel! Ah! Ah!... Só eu sabia a verdade!!! Só eu!!!...

Ah! Agora era o acusador! Ainda ouço a sua voz vibrante:

-- ... e isso tudo calculada, deliberadamente!... Como vêem, senhores jurados, além da monstruosa ação que roubou à sociedade uma vida jovem e cheia de esperanças, o réu tentou escapar à Justiça, pela porta não menos criminosa do suicídio... E só não o conseguiu, devido a um milagre da ciência...

Nesse ponto eu não me contive:

-- Não! Não! Não! Eu não sou culpado! Eu não matei ninguém! É mentira! É mentira!!!...

Foi uma bomba, no Tribunal. Todos falavam e ninguém se entendia. Um guarda tentou me obrigar a sentar...

-- Deixem que eu fale! Deixem que eu fale! -- Gritava eu, desesperado.

O Juiz, por fim, exigindo silêncio, deu-me a palavra. Eu ainda estava gritando:

-- Deixem que eu fale! Eu não matei ninguém! É mentira!... O culpado já foi castigado! Ele morreu!!!

-- Novamente a confusão... novamente o Juiz...

E eu continuei:

-- Esperem! Vocês não acreditam? Ele morreu, sim! Eu sou outro, ouviram? Eu não sou Miguel! Ele morreu! Eu sou Aldebarã! Aldebarã, ouviram? Aldebarã! Miguel morreu! É justo que eu pague pelo crime de outro? -- Não! Eu não matei ninguém! Foi ele! Eu sou Aldebarã!!!...

Outra vez a balbúrdia... Outra vez o Juiz, com seu martelinho...

-- Fica suspenso o julgamento. Seja o réu submetido a exame de sanidade mental.

Hum! Exame mental! Para quê? se eu estava bom!? Por quê? Se eu raciocinava perfeitamente!!...

Foi então que resolvi contar tudo ao médico... Ele não acreditou:

-- Absurdo! --Disse ele...

Absurdo!... Que sabem eles de absurdo? Absurdo!...

Absurdo foi o resultado do exame: Incurável lesão no cérebro, causada pela bala"... Isso sim, foi absurdo! Eles queriam dizer que eu estava louco!... Louco!... Eu tenho cara de louco? -- Diga: eu tenho cara de louco?...

................................................................................................................................................

Essa foi a incrível e dramática história que ouvi...

Não quis interpretá-la!...

Apenas guardo, ainda, a lembrança daquela estranha canção e daqueles versos escritos a carvão, na parede branca:

"Sim, o silêncio!...

Deixai-os dormir!...

Tocam a reunir

e é só!...

É o silêncio do sono eterno

daqueles que lutando

por um ideal que é tudo,

no Nada mergulharam!...

Julio Sayão
Enviado por Julio Sayão em 25/01/2006
Reeditado em 05/02/2006
Código do texto: T103896