Contos Noturnos I - Inverno

Contos Noturnos I - Inverno

"I was fool couldn’t let myself to go

Even though I feel the end...

Full moon sways..."

(Beat Crusaders - Moon on the water)

A noite era fria e escura, não havia lua, o vento gélido beijava suavemente a minha face, e as únicas luzes vistas eram as artificiais estrelas dependuradas nos postes metálicos. As ruas estavam cheias de corpos vazios, que se movimentavam aleatoriamente no asfalto molhado. Eu transpassava por tudo isso, virando-me em uma rua de ladrilhos, onde as luzes já não eram mais tão visíveis e o véu da noite negra de inverno ia tomando o caminho. Os sons eram abafados por meus passos apressados, as construções passavam dar lugar à minha vazia e solitária caminhada, até que ao longe e em minha direita aparecia aos poucos no negro horizonte uma casa branca, onde um portão de madeira contrastava ao cal nevado e encardido, aproximei-me e abri o portão. Estava apenas encostado e o ranger frágil das dobradiças logo estaladas deu lugar ao som do rio que cortava os canais. Desci pelas escadas escuras sem conseguir ver um palmo a minha frente, mas com a destreza de quem bem conhece o caminho percorrido inúmeras vezes. Após a escadaria um corredor seguia, eu sabia que nada bom me esperava após a grade que transcendia o obscuro corredor, meus passos foram se atrasando, ficando lentos e pesados, como se o peso de um mundo caísse sobre meus ombros e eu pisava em cimento fresco. Meus batimentos se aceleravam e minha respiração ofegava, eu conseguia ver o vapor que saia de meus lábios. Toquei o metal pesado e abri as grades, o som estalado de gritos encurtados atingiu ruidosamente meus ouvidos, e que de atordoados foram rapidamente confortados pela aveludada voz que vinha de trás de uma poltrona acolchoada.

- Entrai que te espero.

A voz era suave, mas soturna. Uma gota caiu desesperada de meu rosto. Aproximei-me ficando por de trás da poltrona que reflectia rubra a cor da lareira que crepitava ao fundo.

- Mandaste me chamar e vinde o mais rápido que pude...

- Eu sei, e tu bem sabes dos favores que me deves, os cuidados, o carinho, noites e dias em claro que passei por você. Entretanto tanto zelo causou tua rebeldia e meu descontentamento, já que minha amável criança está querendo desprender-se de mim e percorrer as ruas mundanas com uma vagabunda.

Enquanto falava as palavras finais suas unhas arranhavam o braço da poltrona deixando lascas finas de madeira caírem ao chão. Eu abaixei a cabeça e engoli sufocado as palavras que não me desciam a garganta, principalmente, a ultima... "Vagabunda". Eu muito bem sei, nós éramos de mundos "diferentes" e ela com toda a certeza não era a mais correta e casta das damas, só que ver ela comparada à uma vadia mundana... Não, não entrava tal imagem em minha mente, era algo inimaginável, ela era gelada como a chuva noturna e melancólica como uma tarde de crepúsculo outonal, porém ao mesmo tempo consegua ser quente como o fogo consuminte, ela era o sol oriental que irradiava ruivo em minha mente antiquada. Meus dentes trincaram.

- Me diz, o que tens a dizer? Eu que tanto te amei, tirei da miséria teu corpo, tirei do fim tua alma, te dei uma nova vida, uma vida infinita a teu carpir sedente e jovem, e é assim que me agradeces?

Meus olhos ardiam, uma fúria me consumia a cada palavra cuspida em tons veludosos que ressoava como aço áspero em minha cabeça.

- Eu a amo...

- Tu amas uma besta vagabunda?! E a mim?

- Eu apenas vejo a ti como uma velha serpente que não deixa a presa que pegaste livre, estrangulando-a enquanto digere com suas vísceras temporais a morte.

Ela ameaçou dizer algo, mas sua voz ficou presa na garganta e no ar. Os cabelos negros e a pele lívida se contrastaram com os olhos vermelhos como sangue, como suas unhas... Ela estava de pé e olhava fixamente a mim, eu deixei escapar um sorriso que deixava claro as minhas intenções. Eu sabia que somente um sairia vivo, e morrer por amor era tolice demais até para mim. Não detalharei a batalha, o sangue e os mal dizeres cruéis pouco me valem, entretanto eu pensei que morreria ao matá-la, mas eu não morri. Eu vivia enganado. Naqueles tempos eu achava que apenas uma morte resolveria algo, que apenas o amor resolveria tudo, e assim curaria as feridas da alma... Ai, ai, eu era tão ingênuo e tão tolo... Uma morte leva a outra e assim consequentemente, e o amor nem sempre se torna imperecível ao tempo e às mãos contradizentes da "ordem natural das coisas". Lobos caçam à noite.

Nós éramos de mundos diferentes...

R Duccini
Enviado por R Duccini em 30/06/2008
Reeditado em 30/06/2008
Código do texto: T1058578
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