"Pobre e Fragil Velhinha" =Conto=
- Cuidado, Humberto. Tome muito cuidado...A velha é fogo, meu querido. Estou te avisando. Encarquilhadinha, frágil, velhinha daquele jeito, a mulher é dose pra leão. Esperta como aquela, te juro, ainda não conheci na vida. E você sabe que sou mulher vivida, experimentada, sofrida mesmo.
- Você quer dizer malandra escolada, isso sim. Uma linda safada. Mas a esperteza da velhinha não me assusta, minha querida. O que eu quero é só o telefone da macróbia. O resto você deixa comigo.
- Vê lá o que vai fazer, Bertinho...Não quero me envolver em encrenca feia nenhuma. Foi uma puta barra limpar minha ficha e conseguir um emprego bom feito o que tenho na casa dela. Tenho cama, comida, sossego e, mais importante que tudo isso, a velhinha é um doce comigo. Me trata como se fosse uma filha dela. E você sabe que eu nunca tive mãe. Às vezes acho até que fui fabricada...
- Juro que não haverá encrenca alguma pro seu lado, morena linda. Nem violência. Você sabe que eu detesto sangue. Só quero mesmo é dar uma “limpa” geral na conta da velha, e pra isso não me falta competência. Diga logo, meu bem, qual é o telefone dela?
- Vou anotar aqui, mas olha lá, não tenho nada a ver com o que você vai fazer...
- Não vai querer nem um presentinho?
- Nada. Nada. Nadica de nada. E só estou te passando o número do telefone pra você tirar um pouquinho do que ela tem, que é muito pra uma pessoa só. Ainda mais no fim da linha...
- Deixa comigo. Só a grana que você disse que está amoitada no Bradesco pra mim é o suficiente. Aquele extrato que você me mostrou é recente?
- De ontem à tarde, querido. Deixou na sala por esquecimento e eu peguei. Ela diz que aquele dinheiro é pra quando ela ficar velha. Vê se pode...Já deu duas vezes a volta no Cabo da Boa Esperança, já está devendo lá em cima, e ainda acha que ainda está pra ficar velha...
No dia seguinte a idosa Catarina, funcionária pública de alto escalão, há muitos anos aposentada, recebe um telefonema. A pessoa identifica-se como gerente do Bradesco e encarregado de atendimento especial a clientes especiais. Queria marcar uma hora com ela para, pessoalmente, recadastrar seus dados e oferecer-lhe maior segurança em sua conta no banco.
- Pois não, senhor gerente. A que horas o senhor pretende vir amanhã?
- Às quatro da tarde. Seria um bom horário pra senhora, dona Catarina?
- Seria ótimo. Vou esperá-lo com um bom chá quente. Até amanhã, então. Ah, por favor, espere um pouco, não desligue ainda. Preciso pedir-lhe um favor enorme. Se o senhor puder, se não for atrapalhar sua vida, gostaria que fizesse um saque em minha conta e me trouxesse um dinheirinho. Pode ser? Como gerente do banco o senhor não terá dificuldade alguma; não é mesmo? Aqui em casa eu lhe dou o cheque da quantia que o senhor puder retirar pra mim.
- De quanto seria, dona Catarina? Se não for muito...
- Não, meu caro jovem. Uns três mil reais seriam suficientes pras despesas mais imediatas, para as contas que tenho que pagar por estes dias.
Humberto desligou o telefone preocupado. Três mil reais? No momento ele possuía no bolso quase que só a metade, resto do dinheiro conseguido em seu último golpe uma semana antes. Achou que seria bom completar a quantia e levá-la em dinheiro vivo para agradar à velhinha, fazer uma média com ela, conquistar sua confiança e depois raspar até o último centavo de sua polpuda conta-corrente.
Recorreu aos pais e conseguiu o dinheiro. Trambiques, só fora de casa. Em família era considerado ajuizado e honestíssimo.
No dia seguinte, às quatro em ponto, tocou a campainha na casa de dona Catarina e foi logo atendido pela empregada, sua amizade colorida do momento.
- Boa tarde, moça. Por gentileza, pode me informar se dona Catarina está?
- Claro que sim, senhor. Ela o aguarda na sala de visitas.
Com uma mesura brincalhona a empregada fecha a porta e o encaminha à sala.
- Dona Catarina, é aquele senhor que a senhora estava esperando. O gerente do banco.
- Boa tarde, meu caro jovem. Como vai a vida? Muito trabalho?
- A senhora nem pode imaginar, dona Catarina. Com esse recadastramento dos aposentados a gente não tem parado um minuto nestes últimos dias. Há dias em que chego em casa às dez, onze da noite. Esse governo parece que só quer encher a gente de trabalho...
- Coitado...Então, o que é que precisa para me recadastrar?
Humberto abriu o notebook em cima dos joelhos e começou a relacionar lentamente os documentos que precisaria que ela lhe fornecesse.
- Ah, seu gerente, já ia me esquecendo...O senhor conseguiu fazer aquele saque pra mim?
- Claro que sim, dona Catarina. Claro que sim. Os três mil reais estão aqui, à sua disposição.
Enquanto a empregada contava o dinheiro, Humberto reparou que a velha não mexia as mãos abertas, com os braços apoiados nos braços da elegante poltrona de veludo vermelho, usando um surrado e enorme roupão avermelhado.
- Tem três mil aí, minha cara?
- Tem sim, dona Catarina. Está certinho.
- Então guarde no lugar de sempre, minha querida. Senhor gerente, estou às suas ordens. Que documentos o senhor precisa?
Humberto foi anotando todos os números de todos os documentos até chegar ao que realmente queria: a senha da conta de dona Catarina no Bradesco.
Ela a forneceu com um sorriso e ele entrou, virtualmente, claro, na conta dela. Ao olhar a tela, levou um susto:
- O que houve, dona Catarina? Sua conta está zerada de todo...
- Claro, meu caro gerente. Nem poderia ser diferente. Logo que recebo telefonema de um vigarista eu mando zerar a conta. Passo tudo para um investimento a prazo fixo pra que ninguém possa mexer no meu rico dinheirinho.
- Que vigarista ligou pra senhora, dona Catarina?
- Além de você, nenhum outro, meu caro jovem.
- Dona Catarina, eu sou...
- Não é nada, moço. Você não é coisa nenhuma. Você é apenas um trouxa que me trouxe três mil reais e vai ficar três mil reais mais pobre. Agora dê uma olhadinha pra trás.
Humberto olhou e viu dois homens imensos, de caras fechadas e braços cruzados, sem expressão alguma em seus olhares fixos nele.
- Meninos, levem esse homem para o lugar de sempre, mas não o matem. Batam só o suficiente pra ele esquecer que um dia veio a essa casa.
Humberto tentou correr em direção à porta, mas um murro em sua cabeça jogou-o ao chão, desacordado. Um minuto depois era transportado no porta-malas de um carro para um local qualquer. Um local de onde sairia como um zumbi, sem a menor noção de quem era. Ou do que era.
“Dona Catarina”, ao levantar-se, despiu-se do roupão apenas com o movimento do corpo, mostrando à cúmplice o corpo perfeito, e riu satisfeita chamando-a:
- Venha, minha querida. Venha acabar logo com essa minha maquiagem de velhinha que eu não agüento mais essa coisa. Quero voltar a ser logo a lourinha mais gostosinha do pedaço.
- É pra já. Só três mil reais...Não acha que foi muito pouco, “bivó”?
- Mais do que isso ele não teria. Conheço de longe um vigarista barato. Esse golpezinho foi mais pra gente não perder a prática. Um treino pra esquentar.
Nos braços da imponente poltrona ficaram as “mãos encarquilhadas” de “dona Catarina”, presas ao velho e comprido roupão. Mãos denunciam muito a idade. Melhor não mexer com elas. Melhor utilizar aquelas. As fabricadas por encomenda.