QUEM CONTA UM CONTO... CONTA DOIS

A noite já ia a meio.

Sentado diante de seu caderno virtual, José já estava ficando estressado. Seus olhos ardiam um pouco devido à luz da tela. Não sabia como dar continuidade ao conto começado na véspera. A idéia tinha sido boa, mas o desenrolar da história estava lhe dando trabalho.

Para começar, o título já tinha sido uma trabalheira! Tinha colocado um título relativo ao conto, mas pensou:

- Não, esse não vai dar, é o mesmo que dar uma pista clara do que vai acontecer! Ah! Já sei. Vai ser “Excesso de gentileza”. Ummm! Não, não gostei... Bem, por enquanto, fica esse mesmo. Depois eu mudo se encontrar algo melhor.

Resolveu dar uma nova lida no texto:

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“No terminal de carga daquele aeroporto, no galpão repleto de encomendas recém-chegadas da Europa, o fiscal da aduana examinava os volumes, um a um, para ver se havia alguma irregularidade.

Ao seu lado, o funcionário do aeroporto acompanhava a inspeção, tranqüilo, naquele jeito de quem já fez o que tinha que ser feito e tinha feito bem feito. Depois da inspeção, da conferência de documentos em relação às cargas, seu trabalho seria armazenar tudo e passar a relação adiante, para a moça do escritório, a fim de que os destinatários fossem avisados da chegada de suas encomendas.

Em frente a uma gaiola própria para transporte de animais de pequeno porte, o fiscal olhou o número do documento afixado e comparou-o com a cópia que tinha em sua prancheta. Constava como sendo de um cãozinho de uma determinada raça muito valiosa, rara, quase em extinção; descrevia a cor do bichinho, o tipo do pêlo, seu nome, o nome da proprietária, endereço, licença de transporte, e outros detalhes próprios daquela encomenda.

Abaixando-se, para conseguir ver o dito animal a fim de conferir a carga, o fiscal se abaixou e, curioso, o funcionário também olhou: constataram que o bicho estava morto!

Foi o maior espanto!

O fiscal, bravo, cobrou do funcionário a falta de cuidados e segurança. O funcionário não sabia o que fazer, nunca tinha acontecido coisa daquele tipo com ele. Todas aquelas cargas tinham acabado de chegar. Argumentou com o fiscal, que acabou concordando com ele. Era verdade, a carga tinha acabado de chegar. O bicho devia ter morrido na viagem.

E agora? A companhia teria que pagar o prejuízo à proprietária? Ou seria ele mesmo?

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José parou. Leu de novo. Parecia que estava conseguindo relatar a história que imaginara. Afinal, vinha treinando há muito tempo. Tinha um sonho meio alto: queria conseguir um patrocínio para editar seu primeiro livro de contos. Lia para os amigos suas historinhas e eles gostavam do que escrevia. Incentivavam-no a participar de concursos. Meio tímido achava que ainda não estava preparado.

Resolveu continuar a escrever:

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Apavorou-se. Com certeza, teria que encontrar outro bichinho para entregar à proprietária, compensando-a pela perda irreparável! Seria um transtorno! Aquele bichinho devia valer muito, porque o valor declarado no documento de embarque era altíssimo. Coisa contada em dólares! O seguro do despacho cobriria aquele incidente?

- Sr. Fiscal, se puder me dar um tempo e continuar sem mim, vou ver o que posso fazer. ‘Tá bom?

- Tudo bem, mas leve esse bicho daqui. Já está começando a feder.

Sobraçando a gaiola, o funcionário saiu apressadíssimo em direção à sua guarita. No caminho, passou pela lixeira e jogou o cadáver fora com gaiola e tudo. Pensou:

- Vou procurar outro cachorrinho e ponho no lugar.

Voltou, foi ao encontro do Fiscal e lhe disse o que tinha decidido. O homem concordou. Ainda bem!

Começou, então, sua árdua tarefa de encontrar aqui no Brasil, um animalzinho igual ao outro. Com a cópia do documento onde constava a raça e características do cão, foi telefonando para tudo o que era canil que havia na lista telefônica. Trabalhou naquela tarefa até o final do expediente. Os comentários que ouvia não lhe davam muita esperança.

- Que isso, moço, o Sr. não vai encontrar um bicho dessa raça, não. É difícil.

- Que pena, já tive um desses aqui, mas vendi faz pouco tempo!

E por aí afora...

Ao encerrar o expediente, sem sucesso, foi embora descansar ainda preocupadíssimo. Nem dormiu direito naquela noite.

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José resolvera inventar essa história, depois de escutar numa roda de amigos um fato parecido; usaria um pouco mais de dramaticidade do que aquela história que ouvira.

Seu gosto pela literatura vinha de sua infância. Sua mãe lia para ele romances brasileiros, que também a deixavam enlevada. Quando ela deixava recados para alguém da família, além da letra bonita, o texto primava pelo capricho, pelas palavras certas, sem erro algum. Foi ela que o incentivou a ter um diário, para ir aprendendo a escrever as coisas do dia a dia.

Foi assim que passou a gostar imensamente de escrever histórias. Transformava em conto algum caso engraçado ou mesmo dramático, que ouvia entre os amigos.

Sentiu cansaço e sono. Olhou o relógio:

- Nossa, já é madrugada! Se eu continuar, não vou conseguir levantar cedo.

Salvou o trabalho na máquina, desligou-a e foi se deitar. Queria dormir logo. Pensou que isso aconteceria. Mas não, dava voltas e voltas na cama e não conseguia dormir. Ficava imaginando a continuidade do seu conto, coisas que poria ou deixaria de pôr.

- Sabe de uma coisa? Vou terminar isso agora mesmo. Amanhã levanto mais tarde. Afinal, não tenho mesmo muita coisa para fazer.

Tinha feito uma entrevista de trabalho e iria começar a trabalhar na semana seguinte. Estava morando sozinho. Sua família ficara no interior. Ele haveria de vencer na vida. Sua mãe merecia aquele sonho.

Levantou-se, foi até a cozinha, preparou um café instantâneo, pegou a latinha de bolachas e voltou para seu caderno virtual.

- Onde foi mesmo que parei? Tenho que ler de novo.

Entre um gole e uma mordida, leu o que já tinha escrito, corrigiu uma palavrinha, mudou uma vírgula e continuou:

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No outro dia, após fazer o trabalho rotineiro, o coitado do funcionário começou novamente sua busca.

Na metade da manhã a proprietária telefonou perguntando se sua encomenda já havia chegado e sido liberada. Arranjou uma desculpa para a senhora ao telefone, afirmando que tinha sido classificada de vermelho, necessitando de outra vistoria pelo fiscal sanitário.

No momento lhe pareceu que a dona entendeu sua proposição. Chegou até a estranhar um pouco ela não ter esbravejado. Afinal, aquele cãozinho já devia ter tomado tudo o que era vacina, não necessitaria de mais inspeção sanitária.

Já no final da tarde, depois de correr com o serviço rotineiro e nos intervalos pendurar-se no telefone, conseguiu com um criador alemão um cão semelhante ao que morrera.

Era um mês mais velho que o outro, mas não haveria de fazer tanta diferença assim. O preço é que fazia uma enorme diferença! O bicho era vendido em dólares mesmo.

Fez o relatório de responsabilidade do transporte, deu entrada na tesouraria. Falou com o encarregado, explicando melhor em palavras o que não conseguia colocar no papel. O encarregado foi compreensivo. Afinal, a carga tinha acabado de chegar. Não seria dele a responsabilidade.

Saiu um pouco aliviado e foi buscar o cachorrinho no canil.

No dia seguinte, o terceiro da chegada da encomenda, logo pela manhã, já com uma gaiola em ordem, documentada e tudo, com seu respectivo dono lá dentro, telefonou à proprietária anunciando que sua encomenda estava liberada.

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José parou um pouco. Ficou imaginando se não faltava nada, nenhuma informação. Percebeu que não tinha contado a chegada do cachorrinho, onde o funcionário tinha arranjado a gaiola, como conseguira os documentos novos, onde o bichinho tinha passado a noite. Pensou se seria necessário colocar isso tudo, se o conto não ficaria muito comprido.

Resolveu não se estender muito. Afinal, pensou, chegar com o cachorro, comprar uma gaiola e pegar os documentos no escritório, eram coisas de somenos importância. O principal ele já tinha escrito.

Lembrou da notícia que lera no jornal e que fizera com que resolvesse participar pela primeira vez de um concurso. Afinal, aquele conto talvez ficasse bom o suficiente e, se não ganhasse nada, não importava. Pelo menos tinha tentado. Iria se aperfeiçoando.

Tomou o restante do café, mastigou umas bolachinhas e continuou.

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Não tardou muito e a dita senhora apareceu toda preocupada para retirar sua encomenda. Senhora fina, elegantíssima, já de uma certa idade. Devia ser da alta sociedade! Identificou-se e o funcionário pegou a gaiola e a colocou encima do balcão. A senhorinha olhou a gaiola, de um lado, de outro e foi dizendo quase num sussurro de voz:

- Mas... Essa não é a minha gaiola.

- Minha senhora, disse o funcionário, sua gaiola estava levemente estragada, deve ter sido durante a viagem que amassou e coloquei o cãozinho em outra bem novinha.

A madame tornou a olhar com os olhos muito abertos e espantados:

- Mas esse bicho não é o meu!

- É sim, madame, apressou-se a afirmar o funcionário.

- Não é, não. O meu cachorro estava morto!

- Morto!? O que?! Como?! Perguntou o coitado do homem.

- É. Ele morreu na Europa enquanto eu estou aqui de férias e pedi que meus familiares despachassem o corpo para que eu o enterrasse aqui perto de mim, com as honras que ele merece! Eu quero o meu mortinho, não esse vivinho aí! Ai, meu nenen! Quero meu nenen!

O funcionário quis morrer! A madame chorava agora copiosamente. Deu a volta no balcão, arrastou uma cadeira e pediu que a senhora se sentasse. Um pouco relutante, ela se sentou.

- O que vai fazer? Quero o meu mortinho!

- Calma, minha senhora, calma. Espera um pouco, madame, acalme-se, vou ver se encontro sua encomenda no outro setor.

Não sabia mais o que dizer. Saiu em desabalada carreira a ver se ainda encontraria o container do lixo. Levava no ouvido o som daqueles soluços e um autoritário:

- Volte logo!

Chegou ao local de armazenamento do lixo. Já haviam levado o conteiner do dia anterior!!! Pegou seu carro e dirigiu-se a toda velocidade para o aterro onde era despejado, afinal não era muito longe do aeroporto.

Correndo os olhos por cima do monturo com a descarga recente, viu a gaiola. Estava ainda com o bicho dentro, fedendo demais! Pegou-a com certo nojo e a levou de volta.

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José parou outra vez! Por incrível que pareça, seu coração estava disparado! Tinha se deixado contaminar com o que escrevera sobre a aflição do funcionário. Coitado, pensou, não queria estar na pele dele!

Riu para si mesmo. Será que estava melhorando sua escrita a ponto de se emocionar assim? Alegrou-se. Um dia ele conseguiria editar seu livro de contos, com certeza. Seus pensamentos tinham voado longe...

- Daqui a pouco o dia vai amanhecer. Preciso terminar este conto. O prazo do concurso está chegando. Vamos lá. Onde parei mesmo? Ah! Ele entrega a gaiola fedida.

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- Aqui está, madame, sua gaiola e seu cãozinho. Não está cheirando muito bem, não. A senhora quer que eu a cubra?

Entregou. A madame emocionada chorava olhando o cãozinho o tempo todo, limpando seus olhinhos com um pequenino lenço de cambraia...

- Ah! Meu nenen, meu queridinho, que saudade! Pode deixar moço, eu cubro com meu chale.

Assinou o documento de retirada, chorando o tempo todo, cobriu a gaiola, voltou-se e ainda conseguiu perguntar:

- E este vivinho, porque está aqui? Também é encomenda?

E o funcionário emocionado, lhe respondeu:

- Não, madame, é um presente da companhia aérea, para compensá-la por sua perda irreparável!

- Nossa! Quanta gentileza! Vocês são muito gentis! Jamais esquecerei este acontecimento!

E o funcionário, entre aliviado e desnorteado, pensou com seus botões:

- Nem eu!

FIM"

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Pronto. José acabou sua história. Sentia-se aliviado por tê-la terminado. Salvou-a, desligou o computador. No dia seguinte ia imprimir, tirar as cópias, despachar pelo correio. Caminhando sonolento para seu quarto pensou:

- Nossa, fiquei tão ansioso que até parece que sou eu esse funcionário! Cruzes...

Tempos depois...

- Alô, mãe? Oi sou eu, mãe, o José. Sua benção. ‘To bem e a senhora? Jóia. Olha, mãe, tenho uma novidade pra senhora. Nós dois ganhamos uma menção honrosa no concurso. É, naquele que lhe falei, lembra? É, nós dois, claro que fomos nós dois que ganhamos: se não fosse a senhora, eu não saberia escrever como escrevo. Acho até que foi a senhora quem ganhou. Jóia, ‘né? Obrigado, mãe, e parabéns também. Vou mandar a passagem e a senhora vem para ficar do meu lado quando for receber o prêmio, viu? ‘Tá bem. Num chora, mãe! Eu sei, eu sei, é de alegria, né? ‘Tá bem, então. Um beijo, fique com Deus. Te amo, viu?

FIM DE NOVO

Obra registrada

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 06/07/2008
Código do texto: T1066970