A CASA NO FIM DA RUA

Havia vizinhos novos naquela casa da ponta da rua. Casa que muito freqüentou para brincar com os amigos da rua. A mãe de Joãozinho, era mãe de todos e não se importava que a casa estivesse sempre cheia de crianças. Mas há muito tempo estava vazia... sem ninguém. Quem vai morar ali? Pensava junto com as amigas, agora adolescentes, como ela. Não havia mais brincadeiras e rodinhas na casa querida. A menina se refugiava nos livros que o pai tanto a incentivara a ler, desde pequenina. Suas brincadeiras e aventuras estavam depositadas em cada página que lia... e como adorava!

Um dia chegando da escola, no final da tarde, viu o novo vizinho em uma cadeira de balanço na calçada, com um livro na mão. O homem lia de forma absorta e compenetrada. Ficou fascinada, não sabia bem por que. No dia seguinte pôs a cadeira na calçada e foi ler também. E na tarde seguinte, e na outra. O homem na sua calçada e ela na dela. Mas liam juntos. De longe não podia ver a capa do livro do homem... mas imaginava que não era os mesmo que lia... Dom Quixote, de Servantes; As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift; Romeu e Julieta, de Shakespeare; Poesias de Carlos Drumond, Fernando Pessoa; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Jane Eyre e O morro dos ventos uivantes, de Charlotte Bronte; Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis; Meu pé esquerdo, de Christy Brown; O pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry; O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder; Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco; Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques; A montanha mágica, de Thomas Mann; A revolução dos bichos, de George Orwell... esses foram alguns dos livros que lera naquelas tardes esperadas e longas.

A menina imaginava, segundo o comportamento do vizinho, os livros que ele lia. Era um homem maduro, cuja esposa ela nunca via. Assim pensava que ele devia ler Crime e castigo de Dostoievski, história de um sujeito torturado pela culpa de ter assassinado a mulher. Outro dia imaginou que ele lia A Comédia, de Dante Alighieri, pois o homem parecia rir dos transeuntes que por ali passavam. Numa tarde sentiu que o homem tinha um comportamento meio covarde, parecia mesquinho e presunçoso, devia estar lendo A Morte de Ivan Ilitch, de León Tolstoi ou Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, ou ainda O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Um dia percebeu que o sujeito a olhava por cima do livro... só podia ler Lolita, de Wladimir Nabokov, ou Emma, de Jane Austen, ou talvez Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Era sempre assim, e sua imaginação fluía, fluía... Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Angústia, de Graciliano Ramos...

Uns dois anos depois, a casa ficara vazia novamente, mas a menina não se importava. Era uma casa especial e continuaria a ser.