"Uma Homem Indiscrreta" = Conto Policial sem Polícia=

Hans olhou em torno de si e sorriu largamente. Aquele sítio no meio do mato era tudo que queria da vida nos próximos muitos anos. Ali, enfurnado na tosca mas agradável casa, viveria seus últimos anos de vida. Daquela casa só pretendia sair morto e, assim a sorte o quisesse, muito, muito velho mesmo. Seria fácil viver escondido neste país de bugres, de índios, de gente burra e atrasada, de gente desinformada, mas alegre, descontraída, até mesmo amorosa no jeito de ser. Em pouco tempo, sem falar nada de português, já recebera gestos simpáticos partidos de muitos estranhos. Chegara a achar, no princípio, que se embrenhara no meio de doidos, de malucos risonhos, afáveis, sempre prontos a sorrir, cumprimentar, servir prontamente. “Ton diferrente da meu pofo...”, diria mais tarde.

O tesouro que conseguira acumular nos campos de concentração, formado pelas muitíssimas jóias, pela enorme quantidade de dentes de ouro, as pedrarias, as pequenas e valiosíssimas obras de arte, foi embarcado clandestinamente, a um custo altíssimo, e chegara ao Brasil bem antes dele. Felizmente chegou tudo na mais perfeita ordem e ele teria uma velhice tranqüila, respaldada em uma sólida fortuna escamoteada dos milhares de judeus que matara ou ajudara a matar. Valera a pena pagar a porcentagem exigida para a entrega de “seus” pertences. O pessoal especializado trabalhara bem e, por incrível que lhe parecesse, honestamente.

Através de um amigo naturalizado brasileiro, adquirira o sítio sonhado, para lá se mudara, escondera o cofre de aço de uma forma que considerava absolutamente segura, e em bem pouco tempo via-se cercado de todos os itens de conforto a que estava acostumado em sua Alemanha natal de antes da guerra: uma ótima lareira, uma excelente biblioteca, uma adega de primeiríssima ordem, uma cama fabulosamente grande e confortável, um novo e potente automóvel importado, suas caixas de charutos cubanos, suas caixas de uísque caríssimo. Só lhe faltava, no momento, a companhia de uma bela mulher. De preferência uma bela e burra mulher brasileira que não entendesse sua língua, que não traduzisse suas falas de sonâmbulo, sobre as quais já o haviam alertado. Enfim, queria uma mulher que nada pudesse sequer imaginar sobre seu passado de crimes hediondos.

Adelaide, mulata quase branca, de bastos cabelos lisos e de olhos enormes olhos verdes, dona de um sorriso alvíssimo e extremamente cativante, aos dezesseis anos resolvera estudar alemão. Não apenas aprender um alemão básico, para viagem, para o consumo de apenas alguns dias de viagem pela terra de Nietzche. Queria aprender alemão tão perfeitamente a ponto de poder ler, escrever, lecionar e, acima de tudo, falar como se fosse sua língua materna.

Aos vinte e dois anos, seis anos depois de tomada a resolução, dominava o idioma alemão tão fluentemente quanto um bom professor berlinense.

- Filha, venha com a gente, minha querida. Seu pai faz questão que você vá conhecer o sítio que ele quer comprar. Se você não for, Dela, seu pai ficará muito chateado. Você sabe que ele não acha graça em nada sem você, querida...

- Puxa vida, mãe! Você nem me deu tempo de responder e já veio essa ladainha toda...Eu irei com vocês, mãe. Também estou curiosa. Quero conhecer logo esse paraíso de ar puro e cheio de mato que o pai tá doido pra comprar.

- Mãe, você não vai acreditar, mãe!! Sabe quem é dono do sítio ao lado? Um alemão lindo demais, mãe!! Ele deve ter seus trinta e tantos, quarenta anos, mas é lindo. Grandão, fortão, tem os olhos azuis e é louro de doer os olhos!!

- Você contou a ele que fala alemão muito bem, filha?

- Não, mãe. Por dois motivos: o primeiro é que não chegamos a conversar, pois eu só o vi de passagem ao lado da cerca. O segundo é que não quero contar sobre isso mesmo que a gente venha a conversar.

- Porque, filhinha? Não seria bom ter alguém com quem treinar o idioma? Que, cá pra nós, eu acho feio demais...

- Pensa bem, mãezinha: se eu ficar quietinha, não contar que falo alemão, ele pode se abrir e falar coisas interessantes pensando que não estou entendendo. E agora, logo depois do fim da guerra, essa alemãozada deve ter muitos segredos guardados. Vou falar com o pai também, e a senhora já sabe que não deve dizer nada ao “Fritz” sobre isso.

- Você é quem manda, minha querida “gênia” da família...

No dia seguinte Adelaide viu o alemão encostado à cerca de seu sítio, olhando-a fixa e sorridentemente. Ela se aproximou dele e lhe deu bom-dia.

Com certa dificuldade, ele respondeu em português:

- Boa dia, senhorrrita. Speak english?

- Não senhor.

- Alemão nem pensarrrr...

- Não senhor.

A partir daí ele iniciou um monólogo, com cara de quem a estava elogiando em alemão:

- Você é a vaquinha mais bonita e gostosa que encontrei nesse pedaço do mundo. Sua bunda e suas tetas são formidáveis. Eu daria tudo pra lamber esse corpo todo, da cabeça aos pés, o dia todo e a noite toda. Mas fique tranqüila que vou dar um jeito de te levar pra cama o quanto antes.

Adelaide controlou-se. Apenas olhava para ele e sorria candidamente.

- Pena que não estamos em um dos campos de concentração. Eu te mandaria tirar a roupa toda, na hora, e te comeria de todos os modos possíveis e imagináveis. Mas não te mandaria pra forno nenhum, nem para a câmara de gás. Guardaria pra mim até me cansar. Depois resolveria...

Ele falava mansamente, monotonamente, sempre sorrindo como se estivesse fazendo uma declaração de amor.

Quando ele fez uma pausa mais prolongada, Adelaide aproveitou-a:

- Homem lindo você.

- Que dizer?

- Homem lindo você.

- Non entender. Esperra. Dicionárrio.

Tirando do bolso um pequeno dicionário alemão-português, pediu a ela que apontasse as palavras que acabara de pronunciar. Ao ficar ciente do que ela dissera, aumentou o sorriso, apontou para ela e disse:

- Lindo você.

Ela corrigiu:

- Linda.

Ele repetiu:

- Linda. Cerrrto?

- Certo.

- Me ensinar seu língua?

- Sim.

- Pai, eu vou continuar aqui no sítio por mais algum tempo.

- Menina, menina, veja lá o que vai aprontar. Acho perigoso te deixar aqui. Creio que é melhor que vá conosco pra cidade e te prometo voltar na semana que vem.

- Não, pai. Quero ficar e não há perigo algum. O caseiro e a esposa me farão companhia, e quanto ao namoro com o alemão, não se preocupe. Você sabe que sua filha tem muito juízo.

- Esses estrangeiros, filha...A gente nunca tem a menor idéia de com quem está lidando. Olha que ele pode ser um ex-nazista, um foragido da justiça alemã...Não, não, não. De maneira alguma você ficará aqui. Pode se arrumar pra ir conosco.

Adelaide ficou. Os pais se foram, contrariados, mas, como sempre, acabaram dobrando-se à vontade da filha.

Poucos dias depois Adelaide e Hans passeavam de mãos dadas pelo sítio, trocando carinhos e olhares, enquanto ela lhe ensinava os nomes das coisas em português. Divertidas aulas peripatéticas.

- Amora

- Amorra.

- Não. A-mo-ra , repita, a-mo-ra...

- Rrrepitaamora.

Ela ria e repetia até que ele amenizasse o sotaque. Quando ela lhe dava os parabéns ele soltava uma de suas estrondosas gargalhadas de homem feliz.

Muito feliz ao lado daquela linda mocinha que trajava vestido leve, colorido, em chita, bem caipira, mas que a deixava uma delícia de se olhar. Vestido propositalmente escolhido para que ele a considerasse o cúmulo da simplicidade, da ingenuidade.

Sentados à beira do rio, Adelaide ouviu-a monologar longamente, como que esvaziando a mente dos horrores que vira e praticara durante os anos da guerra, durante todo o desenrolar da terrível “Solução Final”, o eufemismo para a total liquidação dos judeus. Horrorizada, mas impassível, sorrindo sempre, ela o ouvia detalhar cenas dantescas passadas nos fornos crematórios, nas imensas câmaras de gás, nos pátios dos campos de concentração. Olhava-o, sorria, desprezava-o profundamente e fingia cada vez mais, com maior e mais intenso esforço, que não entendera uma palavra sequer emitida por ele. Ela só entendia o português, coitadinha...

Um dia, ao ouvir no monólogo do homem a palavra “tesouro”, suas delicadas orelhinhas ficaram mais em pé do que nunca. E ela sorriu candidamente para ele mais do que nunca. O alemão falava em seu idioma natal, olhando para ela fixamente, como se estivesse falando sozinho, absolutamente certo de que ela não tinha nem poderia ter a mínima idéia do que ele dizia. E rememorou em voz alta a exata localização do cofre abarrotado de jóias e dólares. Tudo devidamente memorizado por Adelaide, a caipirrinha burrrra e ignorrrante que estava indo para a cama com ele, o felizardo Hans, o quebrador de ossos e esfolador de peles judaicas.

Certa tarde, Hans dormia na rede armada entre duas árvores, bem em frente à casa do sítio, e Adelaide riu ao perceber o quão fácil seria matá-lo. O crime perfeito. O crime sem deixar pistas. O crime sem a mínima possibilidade de um dia vir a ser descoberto e comprovado. O asqueroso genocida dormia com a boca escancarada e emitindo um ronco ensurdecedor.

Um dos pequenos frutos da árvore, pouco maior que uma azeitona, foi enfiado pela goela escancarada do ex-nazista e Adelaide sumiu em segundos, correndo em direção ao seu próprio sítio.

Após vários minutos de uma dança macabra, executada sozinho, tentando bater nas próprias costas para livrar a garganta do que a entalava, Hans estatelou-se no chão, caindo de comprido e batendo a cara nas pedras. Morte por asfixia acidental.

Adelaide encheu muitos passaportes durante décadas, realizando seu sonho de conhecer o mundo inteiro, de aprender diversos idiomas, de comprar todos os livros que teve vontade de ler, montar sua pinacoteca selecionadíssima, enfim, viver nababescamente como a “quase-viúva” de um cruel genocida. Faz pouco tempo que faleceu. Sem jamais contar a ninguém em que lugar o cofre do alemão continua escondido.

O único país que ela fez questão absoluta de não conhecer foi a Alemanha.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 17/07/2008
Reeditado em 18/07/2008
Código do texto: T1085339
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