O MURO

Passos pesados, arrastados, sob o sol de meio dia... as pernas doíam quando chegou à avenida, os sapatos pareciam esmagar-lhe os dedos. Avistou o longo muro amarelado feito página arrancada de um livro encarquilhado - assim, à distância, parecia quase uma miniatura de presépio.Lembrou-se de Beatriz correndo ao longo da rua, ainda sem asfalto, tentando pegá-lo. Ele, rapidamente, escondera-se perto do muro, atrás da gigante paineira, tão antiga como aquela vila. A garota hesitou, parou e gritou, chorosa:

- Aí, eu não vou! Esse lugar me dá medo!

Riu-se dela e provocou:

- Medrosa! Vem me pegar, vem! Medrosa! Medrosa!

Beatriz deu-lhe às costas, ameaçou ir-se – “assim, não brinco mais!”

Com passadas largas e rápidas, logo a alcançou mas parou, confuso, sem graça ao ver uma lágrima lhe cair sobre a face.

- Não precisa ficar assustada, Bia, eu te protejo. – e, num ímpeto que não sabia explicar, abraçou-a. Ela ergueu seu rosto ainda de menina, sorrindo com os dentes muito alvos. Sentiu vontade de beijá-la tão frágil lhe parecia, tão linda! Enrubesceu ao perceber uma revolução em seu corpo e, por não compreender, por inexperiência, afastou-se da garota, sem jeito.

- Bobona! Só queria mostrar o bicho preguiça que está lá no alto da árvore. Todo mundo já viu, só você não. Ontem, a gente até cutucou aquela coisa! Só que o zelador apareceu e saímos correndo. O homem ficou gritando: “seus moleques malvados, judiando do animal!” Eta, velho besta! Você é muito medrosa, eu não tenho medo de nada!

- Duvido!

- Se eu contar uma coisa para você, jura que não fala para ninguém?

- Não sei...

- Então, não conto!

- Está bem! Eu juro.

- Mesmo?

- Pela minha joaninha na caixa de fósforo.

- Uma noite, eu e meus amigos, a gente veio brincar aqui. Estava muito escuro, parecia noite de assombração, dava para sentir até o frio na espinha. O Antenor desafiou: quem era homem de verdade devia pular o muro para fazer campeonato de xixi lá dentro. Eu não sou medroso e fui. Eu e mais três, menos o Antenor, aquele covardão, mariquinhas! Nem o Tião, correu que nem mais se viu. Escolhemos o vaso mais bonito para mijar nele, o meu jato foi o mais longo e demorado.

- Credo! Isso é pecado! Você vai para o inferno! Pro inferno, ouviu?

Nunca confessou a Bia que passara várias noites em pesadelos, um medo danado do diabo vir buscá-lo. Sem conhecer a Divina Comédia, já ardia no inferno de Dante a que Beatriz o condenara.

A infância passou e para trás ficaram Beatriz, a pequena vila, as molecagens. A vida incentivava outros desafios, aprendeu a beijar as moças, beber cerveja, concertos de rock e de jazz, tantas novidades. Um dia, já esquecido do passado, acompanhava uma palestra de Antonio Cândido sobre os mistérios de Capitu e, enquanto imaginava-lhe a tez morena, os olhos oblíquos, distraiu-se com certa boca que lhe sorria, todos os dentes nos lábios carnudos, os loiros cabelos. Quase não reconheceu Beatriz tão bela como aquela de Dante e sabia que, desta vez, não hesitaria como dantes. Sensual, mais sensível, ela guardava nos olhos a mesma luz de inocência, entretanto o corpo convidava ao desejo - a presa delicada despertava o faro da fera. O amor de outrora ressurgiu mais intenso e viril: aquela mulher que guardava a chave do paraíso seria sua.

- Bia, não vá embora ainda! Fica comigo esta noite!

- Tenho medo! Não me sinto pronta.

Pouco a pouco, o corpo foi cedendo e a ternura aumentando até o ponto em que não se consegue renegar a vontade, Bia tornava-se amiga, mulher, amante. Se a vida fosse certa, seria um conto de fadas mas estes estão trancados nas capas dos livros. Ah, doce Beatriz, coração sereno, como renunciar desafios, pesquisas, crescimentos? Bolsa de estudo, carreira? - "Você me entende, meu bem?" - Nos descaminhos da floresta escura, houve promessas de retorno que não seriam cumpridas: sucesso e fortuna fazem logo esquecer o que aquece o coração. O príncipe envaidecido fora buscar em reinos distantes outras promessas. Voltou muitos anos depois, exausto, desiludido, deixou família para trás sem que doasse ou recebesse felicidade, não fez amigos, nem trouxe fortuna. Cultuou a lembrança de Beatriz em cada manhã clareada após madrugadas de insônia, arrependimentos inúteis.

Recomeçar sempre é preciso para quem ainda está vivo: um novo emprego, exigências mais simples, grandezas esquecidas, reinício! Talvez, ao ensinar, aprenderia. Cargo aprovado, foi encaminhado à diretora da escola. Beatriz ressurgia como Fênix, uma doce senhora, culta, inteligente, sempre sensível, o corpo desejável. Sentiu-se pequeno e envergonhado porém ela o acolheu com a mesma ternura, a meiga Beatriz, dona do paraíso.

Amou e serviu como vassalo aquela que sempre o amara. Tornaram-se parceiros, cúmplices nos ideais, amigos inseparáveis, companhia de todos os momentos e, quando Bia descobriu-se gravemente enferma, ele dedicou-se inteiramente a ela, mudou-se para sua casa, deu-lhe cuidados de pássaro delicado. Segurava-lhe as mãos quando ouviu suas últimas palavras:

- Tenho medo!

A avenida acabava circundada pelo grande muro amarelo. Observou a gigantesca paineira ainda mais antiga que seus dias e atravessou o imponente portão de ferro. Não havia zeladores a vigiar. Caminhou entre as sepulturas até encontrar a de Beatriz, guardada por um anjo dourado. Ajeitou as flores que trazia aos braços no vaso que jazia sobre a lápide, olhando ao redor para certificar-se de que não havia nenhum menino malvado para profanar o arranjo canhestro que fizera. Cansado e envelhecido, sentou-se e lá ficará a tarde toda, um longo tempo, para que Bia não sinta medo.