O MACACO FOI À PESCA

Ultimamente, o Macaco andava meio estranho: não mais pulava de galho em galho: “transitava” por eles, com modos quase de gente. Já, também, não fazia macaquices.

A Garça branca foi quem primeiro percebera a evolução comportamental do símio. Sapiente, à medida que o tempo passava, observava as atitudes dele para descobrir o motivo.

Acontecera que, havia alguns dias, o Rei Leão convocara o nosso querido ancestral para determinar:

Macaco, você que conhece bem a floresta, por baixo e por cima, sabe de suas dificuldades e facilidades, tem destreza de movimentos, intimidades com galhos e cipós etc., vai nos prestar um grande benefício à bicharada toda e principalmente a este seu Rei: vai descobrir e prender aquele que desafortunou a minha comadre Coruja com o comer de seus filhotes.

O Macaco apiedou-se de si em função de tão laboriosa tarefa. Contrariado, desejoso de esquivar-se de semelhante empreita, relacionou considerandos consubstanciais e os apresentou ao Rei. Tentou reforçá-los argumentando ainda que investigações não eram o seu forte, embora soubesse atirar cocos.

Macaco, eu preciso de um culpado... E que não seja você!

Ciente de que sua lista se dissipara como as sombras das suas florestas, sob os raios do sol de primavera, lá foi o Macaco, muito a contra gosto, destorcer o rabo da porca. Dormiu menos e balançou-se mais; atirou menos cocos e quase não descascou bananas; perdeu banha, ganhou músculos. Até a Macaquinha preferida reclamou cismando de estar sendo passada p’ra trás. Ou seria que ela não se apercebera que, com o tempo, a energia dele teria perdido ampér?

Não! O Macaco trabalhava, enfim. Por isso, trocou macaquices por civilidade. Afinal, necessitava de colher informações, vitais – posto que, culpado, ele não era. Que enrascada! Entre aquele povaréu todo, alguém lhe tivera a infeliz ideia de aliviar da dona Coruja o trabalho de suster as corujinhas. Por isso, agora, tinha ele a tão dificultosa tarefa do fazer intelectual. E conversou com muita gente, com cuidado, porque, até prova em contrário, todos eram suspeitos do vil procedimento. Com os vegetarianos, dadas as predileções alimentares, conversava mais desenvolto. Aos carnívoros, mais observava.

"Filhotes de coruja!!! Arre! que gosto!”

A Garça, porém, não precisou esperar muito para conhecer do assunto. Do que acontecera, do que precisava acontecer e do porquê.

Porque o selvático Rei, ao conceder audiência à Coruja – sua comadre e súdita – deixou-se engabelar em razão da sabedoria desta. Prometera coisas das quais prontamente se arrependeu: onde já se viu? abdicar do trono?! vestir-se de bobo da corte?! desfilar amunhecando?! ele? o Rei das selvas?! ele? de rugido igual ao trovão?! Oras!!! Te cuida, Macaco!

Tudo isso, soubera, o Macaco, da boca do Rei. E a Garça, sem precisar de muita astúcia, da do Macaco. Sugeriu então ao amigo:

Mas, Preguinho, querido meu, quem vive passando avezinhas no papo é a dona Cobra. Não sabes?

Não. Não sabia. Ou fizera questão de não saber. Porque. . . como prender tão peçonhenta inimiga? já que agora o era.

- Não será preciso prender, Preguinho. Raciocina!

O Macaco passou vários dias nesse cruel exercício. Não atinando, voltou à Garça.

- Minha querida amiga, não encontrei a solução. Se me ajudar, trabalharei para você sete anos. Durante sete anos, pescarei os mais apetitosos lambarizinhos para você se alimentar. Veja: você não precisará ficar sobre uma perna só, olhando só para a água da lagoa, esperando o descuido de um deles para, zapt!, nutrir-se. Eu farei isso p’ra você. E você viverá melhor a velhice, porque não correrá o risco de apanhar um reumatismo. Não acha que é uma boa oferta?

- Acho.

- Acha?! Acha?!!

- Acho. Vai, volta ao Leão. Pede-lhe reunir a bicharada, porque tu, meu Pretinho, vais desmascarar o vilão, em público. E que convoque a reunião já para amanhã. Porque amanhã ele saberá quem é o culpado. E saberá mesmo, Prego. Ouve: dize-lhe que . . .

E o Macaco partiu, preocupado, não obstante confiasse na capacidade intelectual da amiga Garça. “Sim, mas. . . como saberei eu dizer em público que o vilão, ou melhor, que a vilã, é a Cobra? Como provar? Pior: como prender? Colocar algemas, onde? E o bote? Prego. . . te cuida. . .”

Mas. . . foi, e disse:

- Assossegai, meu amo. Amanhã, entregareis à Coruja o desalmado que a ela impingiu desgosto tamanho; mostrareis a todos quem é que governa estes feudos; e todos continuarão tendo a certeza da justiça que orienta o vosso reinado. Acalmai-vos, pois.

- Não enrole, Macaco! Ou você estará no mais alto galho da mais alta árvore das nossas florestas. Mas não estará por sua, e sim, pela conta do mais dúctil dos cipós. Na ponta dele, por seu franzino pescoço, que prende sua imprestável cabeça em seu não menos imprestável corpo.

Demonstrando uma segurança que estava longe de sentir, mandou o macaco que Sua Majestade reunisse a bicharada no dia seguinte. Ele, Macaco, estaria posicionado à direita do Rei; à sua direita, que o Monarca mandasse postar o mais fortudo da guarda real para, num eventual fracasso seu, não dar trabalho maior na sua função de enfeite-de-ponta-de-cipó.

Impressionado com o discurso preguiano, o Rei ouvia atento:

- Bem, Majestade, tudo se resume no seguinte: Amanhã, domingo, dia de descanso na selva, às 12 horas, quando todos já estarão de barriga cheia porque após o almoço e com pouca disposição para corrida, Vossa Majestade fará o seguinte anúncio:

Acha-se entre vós, os meus súditos – e já o vi no meio da multidão-de-vós –, aquele que há trinta e oito dias fez desesperar à minha comadre Coruja com o devorar de seus filhotes. Posto que minha comadre seja coração e alma assaz bondosa. . .

- Não enrole, Macaco!

. . . etecétera e tal, e não querendo ver amargar um irmão, que por certo sem o querer o fez, a uma pena que certamente o fará sofrer infinitamente, pelo reparo de haver-lhe, coisa que a mim também entristece, aliviado do doce trabalho de criar, educar, encaminhar, orientar e outras ações mais. . .

- Olha o galho, Macaco. E o cipó!

. . . etecétera e tal, e estando presente o Prego, aqui a meu lado, macaco de nós todos longamente conhecido, que passou os últimos trinta e sete dias me prestando inestimável serviço na descobertura de aquele-que-já-o-vi no meio da multidão-de-vós; dia e noite trabalhando em prol do bem estar do Reino, pelo que lhe dou os parabéns. . .

- Macaco. . .

. . .e que tem provas reais do delito e do delitoso. . . bem: minha Comadre autorizou que a pena a que se submeterá o culpado seja alternativa – assim como os homens o fazem hoje para amenizar. . . — se bem que não é bem este o caso –, que consistiria n’algum benefício social de curta duração e a ser definido pelo Real Conselho. Mas, porém, todavia, contudo, para que não pairem dúvidas, o aquele-que-já-o-vi-no-meio-da-multidão-de-vós precisa levantar-se e dizer em alto e bom som que foi ele o apreciador do prato corujinhístico – e por que o foi. Não o fazendo, o meu laborioso súdito, o Prego, o apontará. Nesse caso, ele será sumariamente julgado, condenado e executado... e morrerá a pau! a pauladas! Levante-se, pois, o culpado, e fale!

- Escreva tudo isso, Macaco. Não vê que não posso decorar essa baboseira toda. Se bem que tá bem armada, reconheço. Mas, só para prevenir, vou preparar o cipó, e o guarda fortudo, que ficará a seu lado, não amanhã, mas a partir de agora.

Domingo de sol, meio dia, 21 de dezembro, dia de solstício – sabe-o o senhor: é o dia em que dia e noite têm exatamente a mesma duração. Acontece em dezembro e, no mesmo 21, em junho. Sol a pino, então; o pescoço todo à sombra da própria cabeça. A bicharada, avisada que fora, ávida de emoção, ansiosa, aclamou a aparição do Rei.

A Tartaruga assoprou impávida na corneta. A fanfarra se fez ouvir: tá-tarará-ta-tam!, tá-tarará-ta-tam! . . .

“Atenção, pelotão!: escolaá, seeentido!!!”

A Guarda Real perfilou.

“Meia-voltaá! volver!!!”

[plá].

“Desfilar em continência ao Rei!: márche!”

[pla, plá, pla, plá, pla, plá, pla, plá, pla. . .]

“Atenção, pelotão!: escolaá, alto!

[plá];

“Meia-voltaá! volver!”

[plá];

“Apresentaarr! ármas!”

E o Rei desfilou até o palanque especialmente armado; assentou-se na cadeira real, especialmente decorada; bocejou um bocejo especialmente de depois-do-almoço – porque ninguém é de ferro.

“Atenção, pelotão!: descansaarr! ármas!”

[plá].

Tú! Tu-tu-tu, tú; tu-tú!

Houve um sinal real.

O ajudante-de-ordem acorreu. Pergaminho nas mãos, assim o Jacaré, com voz empostada, proferiu:

“De ordem de Sua Majestade aqui presente . . . [e falou a fala que o macaco escrevera].

Expectativa, atenção, tensão.

Ninguém se habilitava à confissão. Os segundos escoavam-se lentos, agoniados... escorriam-se. E o tique-taque que ditavam, era o único ruído audível.

A cabeça real voltou-se em direção à símia. Encontraram-se os olhos de ambas. Esticou-se o pescoço desta, e sua boca cochichou na orelha suserana, cuja cabeça balançou-se positivamente. Cochicho na orelha do ajudante de ordem. Discurso sugestivo:

“ - Sua Majestade, aqui presente, sugere se alguém do meio da multidão-de-vós não teria o salutar costume de alimentar-se de avezinhas, porque as Corujinhas, tão bonitinhas, coitadas, também o são.”

“Tão bonitinhas?! Já ouvi isso! Será que comi?! Terei comido?! Serei eu? A responsável por essa reunião, isto é, a reunião é por minha causa? Pode?” – pensou a Cobra.

Podia.

Levantou-se. Colocou-se na ponta do rabo, e a bicharada do entorno deu espaço; afinal. . . cachorro-mordido-de-cobra... E a Cobra, que, a rigor, só teme mesmo a um bom porrete, sibilou:

- Pode ser que haja sido eu. Mas, se fora, não mereço castigo.

A um sinal, a cabeça do ajudante-de-ordem abaixou-se. Fração de segundo depois, voltou à posição original.

- Sua Majestade pergunta: por quê?

- Porque a comadre dele, que também é comadre minha, houvera-me dito que eram uns filhotinhos tão bonitinhos; que eram os mais lindos do mundo! Aqueles que eu encontrara no oco do terceiro mourão da cerca que separa da nossa Mata o sítio do Cafundó, eram tão feiozinhos, tadinhos. Achei que não eram os da comadre Coruja!

A gargalhada geral varreu a tensão. E, posto que ninguém houvera tido disposição para dizer que eram feiozinhos os filhotes recém-nascidos no então, o episódio viera mesmo a calhar; e a deixar mais ruim o humor da Coruja, a que a Cobra não hesitou em piorar, dizendo-lhe agora ao pé do ouvido:

– Comadre e mamãe: seus filhotes não eram os mais liiindos do mundo!

E o Macaco foi à pesca.

José Izidro Manoel - formado em Letras, é servidor público do estado de Mato Grosso. izidro.jim@hotmail.com