Vidas Breves

O teste comprado na farmácia não deixava dúvidas: positivo. Ligou para o namorado. Impaciente, disse que não tinha tempo, nem escutou o que a menina tinha pra contar. Desligou com um sentimento de ódio entupindo a garganta. Chorou, soluçando com força, como se quisesse vomitar aquele ódio e, com ele, aquilo que crescia dentro dela, que teimava em tomar-lhe o corpo sem pedir licença. Ligou para a amiga. Ela tentou reconfortá-la, esses remédios de farmácia falham muito, mulher, uma amiga minha mesmo já usou e deu positivo e na clínica ela foi ver e não tinha nada. Tentou segurar o choro por alguns instantes, mas os soluços teimavam em fugir ao seu controle. Ele continua frio contigo? Ele já sabe? Tu quer que eu ligue pra ele então? Desatou a chorar novamente e desligou o telefone. Com o teste de farmácia na mão, mais uma vez pensou em se matar. Mordeu o travesseiro, temerosa que o irmão, que dormia no quarto ao lado, escutasse. E chorou, chorou tanto que podia jurar que seu choro inundaria o pequeno quarto até afogá-la.

Acordou e não sabia onde estava. A boca seca, o peito levemente dolorido. Vários rostos se amontoaram na sua frente. Filhos, esposa, netos, amigos. O que aconteceu? Onde estou? Sofrera uma parada cardíaca. A última havia sido há quase sete anos. Sua mente não conseguia ainda processar tudo direito. Sete anos sem sentir nada e, de repente, acorda no hospital. O senhor não pode levantar. Qualquer coisa as enfermeiras disseram que podemos chamar. O senhor precisa de alguma coisa? Está sentindo alguma dor? Quer um copo d’água? Seus netos estão aqui pra lhe ver. O médico disse que vai ficar tudo bem. Mesmo desorientado no meio daquela confusão de rostos assustados e olhares chorosos, ele sabia que não era verdade. Os olhos, os olhos não mentem. Os olhos úmidos e carregados da noite sem sono nos rostos de seus filhos, os olhos vermelhos e inchados dos netos, estes não mentiam. Nada estava bem. Ele respirou fundo e esforçou-se para não chorar também.

No dia seguinte, foi com a amiga fazer o exame. O namorado tinha prova e precisava entregar um monte de trabalhos ainda naquela semana para não perder o semestre na faculdade. Ele andava sempre tão ocupado para ela. Sempre os trabalhos da faculdade, sempre algum amigo passando por algum problema, e sempre os problemas deles mais importantes que os dela. No trajeto do ônibus, não conseguia conversar e nem rir das brincadeiras da amiga. A paisagem na janela atravessava seu olhar sem prender sua atenção. Antes de fazer o teste da clínica, ela já sabia. Ela já sentia, por mais que preferisse bloquear isso, por mais que dissesse pra si mesma que não havia nada lá, ela sabia. Ela sabia. Desceram no ponto de ônibus perto da clínica e ela abraçou a amiga. Calma, menina, vai dar tudo certo. A amiga não chorou. Queria ter essa mesma certeza que ela. Naquela noite não dormiu. Não conseguia parar de pensar. Ao longe um bebê chorava em alguma casa da vizinhança. Foi uma noite longa.

Fingiu que dormia para deixar a cunhada menos preocupada. Abriu o olho disfarçadamente e viu que ela dormia no sofá ao lado da cama. No apartamento do hospital havia mais três leitos, mas, além do dele, apenas outros dois estavam ocupados. Os outros pacientes eram um moço jovem e um senhor já bem velho, como ele. O quarto quase não tinha móveis. Além das camas, só mais dois sofás, um armário grande e algumas cadeiras. Era climatizado, confortável, mas esse conforto em nada amenizava aquela angústia em que tinha se transformado o medo que sentira nos primeiros momentos. Amanhã seria o dia do exame. Um cateter, um tubo ditaria sua sentença ou absolvição. Sentiu uma espécie de náusea. Ficou ali, olhando para o teto bege, tentando não pensar na situação, tentando lembrar de momentos felizes para que a angústia não lhe roubasse o sono. No entanto, naquela noite não dormiu. Foi uma noite longa.

Mesmo já esperando aquele resultado, não pôde conter o calafrio quando ouviu o médico dizer o resultado, que lhe veio como uma sentença. No mesmo instante, disse para si, em voz alta, e acabou também por dizer para os demais ali presentes, a amiga e o médico: eu não vou ter esse filho. E naquele momento, ela poderia jurar que sentiu uma contração em seu útero. A amiga e o médico tentaram convencê-la a mudar de idéia com uma enxurrada de argumentos, mas foi tudo em vão. O médico disse que não poderia tomar parte nesse processo de interrupção, mas ela já sabia com quem se informar a respeito. De tanto insistir, o médico conseguiu convencê-la a fazer um ultra-som dali a uma semana.

Um pequeno cortejo de parentes acompanhou o percurso da maca, do apartamento na enfermaria até a sala onde seria feito o exame, no quinto andar. Os sorrisos jamais conseguiriam disfarçar o que os olhos vermelhos expressavam com tanta clareza. Ele também se esforçou para sorrir. Esforçou-se para acreditar no que diziam, para não sentir medo, mas a verdade é que estava apavorado. Quando as portas do elevador fecharam, desejou que elas demorassem mais uma vida para abrir, mas não. Foi uma viagem breve. E isso o fez pensar, como oitenta e seis anos poderiam parecer-lhe agora tão pouco tempo. Quanto ainda havia para ser visto, sentido, tanto que todos os anos não foram suficientes sequer para vislumbrar tudo que ainda havia para ser vivido. Tantos anos nada mais eram do que uma vida breve demais para ele, breve demais para tudo que se apresentava ainda à sua frente. Não era justo, não terminaria agora. Os filhos ainda tinham tanto para aprender com ele. Os netos, que ele vira crescer já sem cometer os erros que cometera como pai, como ele queria acompanhar essa transformação, como eles estavam se tornando pessoas maravilhosas! Não, não acabaria ainda. Ainda havia muito para ele. Cedo demais! Breve demais! A voz do médico a cumprimentar-lhe, já na porta da sala onde seria feito o exame, o trouxe de volta de seus devaneios. Dali a pouco o anestésico misturado ao soro começou a fazer efeito. Antes de o sono dominar-lhe, ele ainda pôde sentir a própria pulsação, o próprio coração batendo, quando o médico segurou seu pulso.

Mesmo após passar a noite pensando a respeito e estar certa de sua decisão, estava nervosa quando chegou à clínica para fazer o ultra-som. O namorado dissera que, o que quer que ela decidisse, ele apoiaria, estando inclusive disposto a casar-se com ela. Grande coisa! Que ele se casasse ou não, não era isso que pesava tanto agora! A responsabilidade da decisão, uma decisão tão difícil! Uma decisão capaz de realmente mudar sua vida para sempre! Decidir sobre uma vida! Decidir sobre... Não queria mais pensar naquilo. Tentou se concentrar. Já na sala do exame, deitou-se e tentou, apesar da situação em que se encontrava, não pensar em nada. Sentiu aquela substância gelatinosa e fria sendo espalhada sobre seu ventre. Quis chorar. Evitou olhar para a tela onde seu... filho... A enfermeira fez com que ouvisse a pulsação do feto. O coração batia sereno. Sereno. Sereno. Sereno. Ela foi sentindo uma calma fria. Serena. Serena. E não ouviu e nem viu mais nada.

Acordou um pouco tonto. Não precisou que lhe dissessem nada. Um filho aproximou-se. Seria necessário um novo exame, para dali a dois dias. Exame coisa nenhuma. Ele sabia que não era nada disso. Dois dias. Mas tão rápido? Só dois dias? O que faria em dois dias? O que diria em dois dias? Para quem diria? Tanto havia para ser dito e tão pouco alcançava seus lábios. E quando tentou falar, sentiu um engasgo. Um tubo invadia sua garganta. Não podia falar. Mal conseguia respirar direito. Pela primeira vez em muito tempo, ele chorou. Eles choraram. E o branco do quarto era mais negro que a noite. Pela última vez na vida, ele chorou, mas nunca chorou tanto na vida. Segurou a mão do neto mais novo. A pele suave dele contra sua pele de seda. Era ele ali também. Todos naquele quarto tinham um pouco dele. Mas quanto tempo esse pouco dele sobreviveria após o fim inevitável, quando ele não estivesse mais presente para ser uma lembrança viva de si mesmo? Por quanto tempo o amor pode manter uma lembrança presa na mente? Por quantas gerações? O horário de visitas terminou. O netinho apertava seus dedos com força, e assim também apertava seu coração já tão fraco. Eles precisaram sair, mas as lágrimas ficaram.

Naquela manhã ela se surpreendeu acariciando o ventre. Ele acordou com a mão sobre o peito. Ela parou na porta da clínica por um instante antes de entrar. Na entrada da sala de cirurgia, ele apertou a mão do neto e sentiu que também apertava seu coração, como o neto apertava o dele. Ela deitou na maca e fechou os olhos. O feto, se tivesse olhos, também os teria fechado. O velho fechou os olhos.

Naquele mesmo instante, no mesmo hospital onde estavam o velho e o feto, nasceu um casal de gêmeos.