Lendas do mar

De três em três dias o mar nos dava a alegria de vê-lo chegar. As ondas empurravam seu barco até a marola, onde aí tomávamos conta da embarcação, retirávamos o pescado. O velho saía sem pressa rumo à sua cabana coberta pelas folhas secas de coqueiro. Dormia quase que durante o dia todo. Antes de fazê-lo, engolia um bom punhado de uma mistura de farinha de mandioca com açúcar, bebia uns goles d’água doce e pronto. Já descansava com os anjos dos oceanos oníricos. Que sono bom!

A canoa engastada na areia tinha lindas histórias trazidas do fundo do mar que só o vento sabia contar. Nos luares de maré mansa, diante de uma grande roda de pescadores despreocupados com o tempo e as civilizações fora da ilha, ele falava manso:

- ... e quando fisguei o peixe, a sereia enraivecida tomou-me a linha da mão, melou-a com uma baba estranha que me deu uma coceira desgraçada e passei o resto da noite a coçar-me. Era sempre assim: ou a gente respeitava as lendas do mar profundo ou ficava a ver navios. Eu gostava de rezar para ela e para os outros. Acho que por isso me dava tão bem com as pescarias que fazia. Quando o mar estava agitado, eu fechava os olhos e entregava o meu destino para ela. Se encarasse as ondas imensas, meu barco fundeava e eu não chegaria vivo na praia. Respeitava-o sempre. Suas águas tinham poderes estranhos e misteriosos. Podia tudo. Dele eu só queria os peixes. No final de cada pescaria oferecia à sereia um pescado. Nem podia ser o maior, nem tampouco o menor. Dava-lhe, quando tinha, uma cioba gorda pintada de dourado. Gostava. Sabia, porque balançava sua longa cauda e soltava um grande grito de amor. Nenhum outro som era tão belo quanto o seu. Esse era um dos motivos de estar sempre retornando a suas águas. Seu grito só era ouvido nas noites de lua nova. Quando isso acontecia, o mar agitava-se e as pontas das estrelas encostavam-se em suas águas. Eu via tudo. Juro que era verdade. Quem duvidava morria estraçalhado na boca de um imenso peixe azul que só aparecia quando ela cantava. Muitos morreram por serem incrédulos.

O velho era assim, cheio de mistérios. O tempo que passava no mar parecia não lhe dar sono. Dele não se sabia nada. De sua família não gostava de falar. Dizia não possuir filhos nem pai. Era a metáfora da existência. Comia, além da mistura doce dos pós, bastante peixe cru, apenas lavado com a água do mar. As histórias que contava eram longas e tristes. Varava a noite enluarada a mostrá-las a tantos que se interessassem. Gostavam de ouvir suas lendas, seus mistérios. O fluxo das palavras que saíam de sua boca, outro mistério difícil de ser desvendado. O velho era um alegre xamã dos mares. Uma lenda que tinha boca e sentia fome. Uma lenda risonha que sabía multiplicar-se diante da curiosidade alheia.

Uma última canoada trouxe-lhe o corpo frio da brisa marinha. Soprava nesse dia um vento forte vindo de longe. Não havia sequer um pescado no seu barco. Sua face dormia serena como se o cansaço houvesse vencido aquela lenda. Vi um retrato triste molhado do sol da água. O velho não se levantara. O barco, paralelo à areia branca suja de sargaço vomitado pela maré da noite, resistia mudo sobre as águas rasas.

Coitado do velho Manzur, não resistiu ao cansaço dos dias. Quem manda um velho desse atrever-se a remar sozinho dias e noites atrás de peixe? Leve alguém consigo. Não é mais um jovem.

O corpo silente e adormecido não respondia. A vida afundou-se ao lado do barco. Dele não sairiam mais as histórias encantadoras, os relatos dos feitiços das águas profundas do mar. O velho estava morto, suas lendas quase esquecidas, o mar, imenso como antes e o céu a prometer muita chuva. Trinta anos após sua morte ainda há os que o vêem a chegar numa canoa dourada cheia de luz. Quem o vê tem pescaria farta. Só não se pode é descrer na lenda do velho, porque o mar não gosta e manda a sereia da lua nova maltratar a pescaria e apavorar o pescador.

A crença curtiu o tempo que guardou as lendas que interessavam a tantos homens da beira-mar. Nas noites de lua, muitos se sentavam na areia branca da praia para esperarem o barco com o velho. Poucos viam, muitos suspeitavam terem visto. Era o bastante para se dar vida à lenda. O mar era do velho. O velho era do mar. A lenda é sua. Eu a escrevi depois de um profundo sonho molhado onde estive com Manzur. Eis a versão da minha estada onírica com ele. Quem não acreditar, fuja do mar. Prefira comprar o peixe trazido do fundo de suas águas pelos que crêem, os pescadores, legítimos herdeiros dessa lenda.