Madalena

Vede aquela freira do outro lado da rua, conversando com alguns rapazes num bar. Difiícil acreditar que ela já foi uma vadia? Nem tanto. Seu nome é Raab, e sua atual situação se deve a um fato ocorrido anos atrás. A protagonista desse fato é sua já falecida amiga Madalena.

Não só sua vida mudou, mas a de toda a pequena cidade. Se reparardes bem, notareis que ninguém tem em muita conta essa freira a paquerar jovens homens num bar, em plena luz do dia. Antes do estranho acon-tecimento, nada disso seria tolerado pela população, que já fora extremadamente cristã e tradicional. Não seria possível, naquela época, ouvir esta conversa entre mãe e filho a passearem na rua:

— Mãe, por que o padre não se casa?

— Porque, meu filho, o casamento toma muito tempo da vida de um homem, e o padre precisa usar seu tempo para inventar uma maneira de convencer a si próprio de que o que lê na Bíblia é verdade. Além disso, se se casasse, seria mais difícil para ele namorar.

A igrejinha já não é mais a mesma, e um visitante na cidade se espantaria de presenciar uma das festas dadas todo fim de semana dentro do próprio templo, ou mesmo uma simples missa.

Enquanto vemos Raab sair do bar acompanhada de um dos moços, narremos a inusitada situação que fez a cidade provar do fruto da árvore do conhecimento.

* * *

Duas mulheres jovens conversam na praça, sentadas num banco. Uma delas tem os cabelos curtos, o ros-to magro e a pele bronzeada. Usa uma blusa amarela e saia vermelha, que deixam entrever as carnes das pernas e do peito. Seus trejeitos são chamativos e seus olhos procuram, por todos os lados, quem possa trocar com ela um flerte. É Raab.

A outra é Madalena. Muito discreta, a pele clara contrasta com a roupa escura e recatada, os cabelos pre-sos, uma Bíblia entre as mãos e o colo. Um rapaz passa e saúda:

— Bom dia, Madalena.

Ela acena com a cabeça e um sorriso.

— Bom dia, Franco — diz Raab.

— Ah, oi, Raab — responde ele secamente, e continua seu caminho.

— Somos tão diferentes, não é, Madalena? Mas somos tão amigas.

— Não somos tão diferentes. Amo a Jesus, e tu também O amas.

— Ai! Se viesse Jesus ter comigo, acho que me apaixonaria tão loucamente que meus atos me fariam ter com Satã.

— Louca, Raab! Teus escândalos já são suficientes para te garantirem um espaço naquele lugar, onde tu irias chorar e ranger os dentes.

— Só se fosse chorar de prazer e ranger os dentes de gozo… Satã, cheio de paixão, deve ser tão…

— Louca, Raab!

— Tu sabes que só brinco contigo. Não devias ser tão sisuda. Nunca vais te casar?

— Sou casta. Só um homem santo vai ter minha mão, para a Glória de Deus.

— E o que dizes do Judas? Tão inocente e apaixonado. Nem eu consegui nada com ele.

— É um bom moço. Mas tem umas coisas…

— É só um pouco esquisito — disse com um sorriso malicioso. — Aliás, é mais original do que excêntrico. Ah, qual nada! Madalena, tu és boba.

— Que é isso? E olha só o nome dele. Não é Iscariotes, mas quem me garante que não me trairia?

Esse Judas era apaixonado por Madalena. Trabalhava na padaria do Sr. Evaristo, e todas as manhãs en-contrava a moça, que vinha comprar pães. Todo gentil com ela, fazia tudo para que gostasse dele. Mas o único homem que parecia chamar a atenção de Madalena era Jesus.

— Nem seus pais são tão puritanos — comentava Evaristo a Judas. — Decente demais, essa moça, para o meu gosto. Mas é boa pessoa. Porém, deveria se casar.

— Também acho. Mas só pensa em Jesus Cristo. Se pudesse, acho que ela se casaria com ele. Que na-da!

E, à tarde, procurava-a na praça, e cantava para ela como se cantasse para a Virgem. Às vezes chamava uns músicos, ou recitava os Cânticos. Altamente tímido em público, a presença de Madalena fazia ruir toda a vergonha, e ele se punha a clamar seu amor, num transe em que só ele e sua Senhora existiam.

Mas ela nunca deu o braço a torcer, nem o joelho a dobrar, senão para sua fé. A não ser até o dia em que não encontrou Judas na padaria.

— Está doente, acho. Sua mãe disse que ele não viria hoje. Para mim, é tristeza d’alma.

— Que pena. Vou rezar por ele.

E saiu, pensando: “Será que é por mim? Ah, que boba! Claro que não. Ele não é tão ingênuo a ponto de se deixar abater assim. Há outras raparigas para ele no mundo. Que nada, deve ser só febre.”

Mas a febre parecia que não se curava. E, se era mesmo febre, fincou raízes no coração do rapaz, pois ele não foi visto nas ruas durante alguns meses. Raab reprovava a amiga:

— Culpa tua! Se tivesses seguido teu coração, o coitado não estaria assim. Olha a mãe dele, tão sofrida. Se o amor dela pelo filho não o está curando, deve estar mesmo mal. Talvez amor de mãe não resolva. Se não fores lá, eu mesma lhe faço uma visita, e meu amor vai curá-lo…

— Louca, Raab! Que coisa! Não é nada disso. Meu coração pertence a Deus. Estou rezando por ele, por-que o amo. Sim, amo meu próximo da forma mais pura.

— Isso não é amor. Não existe amor sem sangue. Teu coração nem palpita pelo infeliz. O único amor puro é quando a alma é condensada e a carne sublimada.

Madalena não respondeu. Tentou pensar na missa do dia, em que ela daria um testemunho. Muitos e mui-tas lhe estavam cobrando a responsabilidade pelos sofrimentos de Judas, a respeito de que, no entanto, nin-guém sabia ao certo. Ela sinceramente se preocupava com a saúde do rapaz, mas achava que ele deveria não se abater com coisa pouca. Era preciso se preparar para a missa.

Estava toda a cidade reunida naquele dia. Nada de incomum, mas havia uma coisa no ar, como se o Espí-rito Santo ameaçasse defecar na cabeça de alguém. Madalena estava especialmente viva, e Raab tinha uma ansiedade que se revelava nos olhos preocupados. Todos estavam tensos, alguns desconfortável, outros animadamente. Madalena começava seu testemunho.

O ambiente parecia se encharcar com éter, enquanto Madalena entrava num transe cada vez mais pro-fundo e estranho. O padre Tiago tentava tomar alguma providência, mas tinha dúvida, não sabia o que real-mente acontecia, ou se acontecia algo.

* * *

Então, ninguém esperava, ouviu-se uma voz tremenda dos portões da igreja.

— Madalena!

Todos se viraram a um tempo e viram um homem de cabelos e barba longos, vestido numa bata branca e com olhar penetrante. A impressão de todos era que ali estava Jesus Cristo, mas a cena causava perplexida-de, mais do que comoção, e ninguém se enganava da realidade dos fatos. Certo é que todos ali sabiam que era o pobre Judas em alguma extravagante esquisitice outra vez. Mas desta ninguém pôde dizer uma pala-vra. Algo no ar abafava as gargantas do surpreso rebanho. Surpresa ainda maior foi o transe a que levou o delírio de Madalena, agora vendo, sob o arco da porta da casa do Salvador, o Próprio.

— Vem e me salva! — gritou ela.

Não via Madalena os olhos apaixonados de Judas. Apenas enxergava de Jesus os cabelos e barba com-pridos e desgrenhados, as vestes santas — e as mãos másculas.

Um súbito movimento impediu ainda que a surpresa fosse quebrada. Atravessando a igreja e correndo pa-ra Madalena, o louco homem agarrou-a e beijou-lhe a boca, o rosto, o pescoço… Não demonstrou ela sinal algum de resistência, nem mesmo quando seu amante a levou ao chão e, tirando suas roupas, deu-lhe a mais perfeita comunhão divina, que nem seus sonhos conceberam. Durante vários minutos, os fiéis assistiram atônitos à mais estranha missa que jamais houvera naquela pequena cidade. O entorpecimento geral só se quebrou muitos minutos depois do êxtase celestial do casal. E mesmo então e após, ninguém conseguiu a-cordar os dois, que nunca mais se levantaram.

Não houve quem pudesse explicar o que acontecera. Nem há quem se lembre o que foi feito dos corpos de Madalena e do imitador de Jesus. Mas quem presenciou o extraordinário fato nunca mais viu sua religião com a mesma fé. E Raab nunca perdoou a amiga, que teve causado muito mais polêmica do que ela e que, além disso, o fez de maneira tão deliciosamente pecaminosa.

Thiago Leite
Enviado por Thiago Leite em 19/04/2005
Código do texto: T12048