Mórbido Confronto

Não se sabe como nem quem permitira a sua entrada, mas o fato é que ela estava lá. Apesar do pouco mais de um metro e sessenta de altura, sua extravagância lhe conferia destaque de gigante em meio àquelas pessoas que insistiam em menosprezá-la. Mas ela parecia não se importar com nada e com ninguém mais naquele lugar. Sabia exatamente o tipo de situação que teria de enfrentar assim que seus dez centímetro de sapato vermelho com bico fino pisassem o chão daquela capela. Não seria tratada diferente da maneira como sempre fora tratada por todos, por isso, numa atitude desavergonhada - como quase todas em sua vida –puxou um pouco mais o já bastante generoso decote do vestido que mal lhe cobria, como se aquele gesto pudesse lhe conferir um pouco mais de coragem - e seguiu pela enorme capela arrastando consigo os olhares reprobatórios e o zum zum zum dos presentes. Precisava ver o velho Jordão de qualquer maneira, nem que, para isso, tivesse de passar com seus 60 quilos de carne morena rija por cima daquela família e de quem mais tentasse se colocar em sua frente. Coisas do sangue italiano que fervilhava em suas veias há quarenta e tantos anos, embora aparentasse bem menos tempo.

E seguiu com seu nariz empinado que só encontrou oposição considerável na figura acabrunhada que ocupava a cadeira ao lado dele. Não que Dona Luíza lhe amedrontasse; já eram conhecidas de longa data, tão longa quanto o relacionamento que manteve com o marido daquela senhora. Todos naquele lugar sabiam muito bem que, além do bairro, aquelas duas mulheres dividiram o mesmo homem por, pelo menos, vinte anos. Mas as visíveis marcas de desgaste daquela criatura, causadas pelos mais de quarenta anos vividos ao lado daquele homem quase tão frio quanto a morte lhe deixara, faziam com que, em segundos, Dolores perdesse a dignidade de que se vestira e voltasse a sua posição de mulher de segunda classe, ou mais uma das diversões do falecido.

Por uns instantes, todos os olhares na capela se voltaram as duas mulheres, que ficaram frente a frente, separadas apenas pelo esquife de mogno lustrado onde jazia o motivo da desavença. Os zunidos e chiados das vozes que, anteriormente, recontavam as maldades do falecido, gastando o interminável tempo que ainda faltava para que, enfim, pudessem entregá-lo de vez ao solo, agora calavam-se esperando por uma reação sonora de Dona Luíza àquela figura de cabelos escovados que teimava em sair de debaixo do tapete, para onde havia sido banida há muito tempo.

Dolores, no entanto, só deixava escapar sua insegurança através das mãos, não conseguia parar de ajeitar os cabelos, que já estavam impecáveis. E mantinha seus olhos fixos em Dona Luíza, que também não desviava o olhar dela, forjando uma cena que lembrava um daqueles duelos do velho oeste. Nenhuma palavra era proferida por nenhum dos amores do velho morto e, com certeza, a vida eterna era o mais conveniente para ele, diante da situação que se criara naquele momento.

A dignidade e distinção de Dona Luíza desmoronavam diante da vivacidade de Dolores. Ela estava ali, corajosa, assumindo sua vulgaridade, reivindicando uma posição que lhe era de direito, posto que fora a única pessoa, além de seu filho adolescente, que conseguira encontrar um lado bom naquele homem rude. Em vinte anos de esporádicos encontros noturnos, Dolores havia conseguido construir a felicidade que Dona Luíza não encontrara em mais de quarenta anos de litígio compartilhado com Jordão. Tivera três filhos que ele não soubera amar; enquanto, por dezessete, ele mimou o garoto gerado nos encontros com aquela mulher vulgar que ele teimou em continuar querendo. Embora, formalmente, nunca tivesse reconhecido o garoto.

Dolores tivera mais sorte na vida, mas lhe custou a dignidade que, supostamente, deveria pertencer a Dona Luíza, que era a mulher oficial do falecido, mesmo não tendo sido de fato; exceto nos momentos em que este fazia uso do direito machista de sacrificar os sonhos dela em troca de seus sonhos.

O silêncio constrangedor ainda reinava entre as duas. Então, Dolores, que era menos polida, achou por bem tomar a iniciativa: desviou seu olhar de Dona Luíza e concentrou-se apenas no cadáver do homem com quem, mesmo de forma truncada, construíra uma história. O turbilhão de sentimentos que a invadiram vendo aquele antes tão prepotente rosto agora acinzentado fizeram com que perdesse os pudores que a presença de Dona Luíza lhe impingia e, por instantes, tomasse o seu lugar: chorou copiosamente por sobre o caixão, rezou num tom que parecia um resmungo, envolveu-se tanto com sua prece, que parecia desconsiderar a presença da família e dos conhecidos do velho Jordão, ainda atônitos diante de tal situação, que era assistida respeitosamente por Dona Luíza, então afastada do ataúde.

Depois de alguns minutos, Dolores voltou à realidade com a capela inteira boquiaberta a acompanhar sua ousadia. Repetiu o ritual: puxou o decote, ajeitou os cabelos e, esfregando os olhos embaçados, dirigiu desculpas à viúva, se é que cabiam palavras naquele momento. Dona Luíza não disse nada, apenas cerrou o olhar em sinal de consentimento, inclinou-se sobre o caixão, retirou o lenço que cobria o rosto do velho marido e, sob os olhares ainda mais espantados dos presentes e da própria Dolores, enroscou os dedos nos fios brancos desalinhados da cabeça do falecido. Num lance rápido, arrancou um chumaço de cabelo que faria Jordão zunir de dor se vivo estivesse. Quando Dolores fez menção de protestar; Dona Luíza entregou-lhe os fios e disse-lhe que levasse o chumaço e, com ele, reconhecesse o filho até então ilegítimo. E Dolores saiu da capela abençoando aquela a quem ajudara a trair e amaldiçoara durante vários anos.

Dona Luíza deixou um sorrisinho escorrer pelo canto da boca e olhou para o rosto do marido como se cochichasse algo ininteligível aos demais presentes e ainda atônitos, mas que seria bem interpretado pelo falecido: “bem que você mereceu, seu cafajeste”.

Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 10/03/2006
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