Noite Lúgubre

Rodolfo passou por aqui, faz tempo, acho que ninguém mais lembra dele. Trazia consigo um sorriso distante, parecido com os Alpes, tão sozinho que não consigo descreve-lo.

Foi um verão em que todo mundo se mandou para o sul, é uma estória de migração, parece passarinho. Ele apareceu, como uma pessoa limpa, de faces claras, era polido, e me convenceu a ser seu amigo, mesmo arrastando comigo fardos de sua solidão, onde nos pareceu a vida, um arrastar de dias. Certo dia, conseguiu uma garrafa de bom vinho, ficou sorvendo cada taça como que se lesse meus pensamentos. Tinha um jeito quase mecânico de beber, anos de alcoolismo. Saímos daquele bar quase trôpegos, ou mais, abraçados como fazem entre si, os velhos amigos, sonâmbulos, ébrios e trôpegos, acabamos dormindo no mesmo leito, o que nos fez acordar calados.

Não quis mais sair lá de casa, contou-me tantas histórias, cada vez com mais vigor, como se sua presença fosse luminar, me fazia sonhar, mesmo sem o menor senso de subserviência, deitei-lhe os olhos e deixei-me levar pela mentira de suas fantasias. Como se fora mago, mulher, árvore ou energia, falava sempre no almoço, tomando-me como platéia. Às vezes marejávamos os olhos de rir, Rodolfo mostrava todo seu esplendor naqueles olhos castanhos e longos cabelos encaracolados, gostava de ser exclusivo, sempre o centro das atenções, nunca multidões.

Aconteceu o inesperado, emudecidos, dentro de nossos pequenos mundos, tomamos nossa sopa alheios um ao outro. Rodolfo levantou-se em direção a porta, sem dizer palavra, senti que era o momento em que partia, como se fora um anjo que saía lá de

casa, tomei a iniciativa de falar alguma palavra que não me que ficou retida em minha garganta. Cabisbaixo fui até ele, estava desfigurado e começou a falar estória de bichos e gente, do segredo dos elefantes quando precisam partir para seus cemitérios, solitários. Sentia esvaziar-me a alma, num momento lúgubre, quando o vento nas árvores tocava uma sinfonia mórbida, rompeu-me a fúria animalesca que ensandece os homens e fazem as guerras.

Quando todos saiam de suas casas, Rodolfo estava rijo e frio, apoiado em meus braços dormentes, levaram-nos, não sei, vejo apenas uma cena, a lâmina penetrando seu ventre, o cheiro de sangue e o sorriso de Rodolfo, fico aterrorizado e novamente vem Rodolfo em meu sonho, encantar-me com seu sorriso.

arupemba
Enviado por arupemba em 16/03/2006
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