E A ELEIÇÃO FOI ANULADA

E A ELEIÇÃO FOI ANULADA

Há muito tempo atrás, em ocasião de eleições, Vila de São João se tornava uma praça de guerra. As domésticas dos chefes políticos transitavam pelas estreitas ruas, com tabuleiros na cabeça, cobertos com bonitas toalhas de linho bordado. Podia-se pensar que o conteúdo daqueles tabuleiros fossem doces ou coisas assim; mas não era, eram carabinas e munição para os jagunços que infestavam os arredores do lugarejo.

E a eleição daquele Domingo de sol, não apresentava diferença das anteriores, o perigo era o mesmo. A votação começou cedo, com os cabos eleitorais conduzindo seus eleitores, para votarem certo. Esses eleitores eram bem alimentados e bem vestidos e calçados pelos seus chefes políticos. E sabiam em quem deviam votar, e votavam. Naqueles tempos ninguém sabia nada sobre democracia e direito de livre escolha; o ambiente era tenso e as brigas eram freqüentes e violentas. Mas a polícia ficava recolhida no corpo da guarda da velha cadeia, para que as votações corressem sem coações, e o dia foi passando, veio o cair da tarde e nada da votação terminar.

As Ave-Marias já se podia notar que estava havendo catimba e que a pequena Vila era um barril de pólvora, que qualquer fagulha faria explodir. O efetivo do destacamento de polícia, era o anspeçada Zurico e dois soldados; de reforço vieram mais dois soldados, um dos quais era quase um menino. Dos soldados regulares do pequeno agrupamento, um praça estava preso aguardando transporte para a capital do estado, onde seria julgado por crime de morte, e o outro vendo as coisas pretas, achou mais saudável adoecer e se recolher muito mal ao leito.

Sobraram o anspeçada e os dois reforços, mas o mais velho, achando o clima péssimo, resolveu tomar uma pinga para se proteger das endemias e acabou tomando um litro ou pouco mais, entrando em coma alcoólico e se livrando de encrencas. O menino soldado, único que restou em bom estado, tentou animar seu superior dizendo: “não se amofine, senhor anspeçada, eu sou novo assim, mas não tenho medo de nada”. E lá ficaram esperando o que desse e viesse.

Por volta das seis da tarde, o anspeçada se armou, e mandou seu único soldado fazer o mesmo e disse ao preso, que era seu compadre, e a Sá Marica, sua esposa: “eu vou sair e acabar com essa agonia, já chega de eleição por hoje”. Sá Marica e o soldado preso pediam que ele lhes desse armas, ficaram dentro da cadeia e só sairiam se ouvissem tiros. Zurico acabou concordando, confiando no compadre abriu a grade e lhe deu um fuzil e bastante munição, armou também a esposa e saiu com o soldado que parecia menino.

No grupo escolar, onde se localizava uma das seções, ele colocou o soldadinho na porta com a ordem de esbarrar com a coronha do fuzil os primeiros que saíssem, e entrou. Como previra o anspeçada, ao vê-lo armado e decidido, o povo correu para a porta, onde foi barrado pelo soldado , que parou o primeiro a sair com uma coronhada no est6omago, e manobrou o fuzil em posição de tiro; estava dominada a situação, morrer ninguém queria.

O anspeçada prendeu os mesários, tomou os livros e as urnas e escoltou-os sob protestos até suas casas; fez o mesmo na última seção e sem disparar um só tiro, estava acabada a eleição. Guardou os livros e urnas na cadeia, desarmou seu pessoal, prendeu de novo o compadre e esperou para ver em que ia dar tudo aquilo.

A eleição estava anulada, é claro, e os chefes políticos bufando de raiva mandaram um emissário a Belo Horizonte, pedir urgentes providências contra o desabusado anspeçada. Pouco tempo depois, chegou certa noite um jovem tenente para apurar os acontecimentos; dirigiu-se a cadeia e ficou espantado, ao reconhecer, no anspeçada, o antigo bagageiro de seu pai, o Coronel Chefe de Polícia do Estado.

Ele era, então, um rapazinho, e o bagageiro, era seu acompanhante nas idas ao colégio e amigo para brincar de guerra nas horas vagas. O jovem tenente ficou em apuros, como poderia punir seu velho amigo? Tinha que dar um jeito e deu mesmo.

Escreveu com a mão direita, escreveu com a esquerda e conseguiu uma papelada tão bem feita, que ficou provado que a valente atitude tomada pelo anspeçada, anulara a eleição era verdade, mas salvara muitas vidas, pois já havia uma pessoa esfaqueada e várias cabeças e costelas quebradas e a qualquer momento poderia haver mortes.

Anspeçada Zurico e o valente soldadinho, receberam elogios por seu desprendimento, arriscando a vida para evitar riscos maiores ao povo de Vila de São João; e os dois soldados covardes foram severamente punidos. Nunca mais se ouviu falar em uma eleição anulada por um anspeçada, mas o tempo passou e tudo caiu no esquecimento, como de costume.

Maria Aparecida Felicori{Vó Fia}

Texto registrado no EDA

Vó Fia
Enviado por Vó Fia em 08/11/2008
Código do texto: T1273003
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