Malu

Era do tipo de mulher cujos objetivos estavam há muito definidos. Mesmo – e principalmente – diante de circunstâncias intimidadoras à maioria das mulheres, Malu, como gostava de ser chamada, reagia como se seu sangue circulasse a temperatura beirando zero grau.

Escolhia seus parceiros, no mais das vezes, em bons restaurantes do centro da cidade e sempre considerando sua tese, defendida entre amigas como uma espécie de dogma: “os melhores homens são os que sabem comer com elegância”.

Malu não se refere ao termo elegância em seu sentido estrito, fashionista. Seu “comer bem” é na verdade uma mistura de estilo, devoção e principalmente atitude diante do prato, da mesa e do ambiente.

Errava quase nunca e já estava nessa toada há bons 10 anos, revezando mesas e dias da semana entre entradas do Beco do Carmo, lombos de cherne do Navegador e crepes de maça do Café Laguiole.

E foi justamente no Laguiole que Malu viu Sidnei pela primeira vez.

Sidnei soava como um castigo aos seus ouvidos. O mundo de Malu era o de Pedros, Marcelos, Julios, Ricardos. Era o mundo de Mil Frutas e Estação do Corpo, apesar de seu pai passar por alguns probleminhas envolvendo duplicatas e divergências sobre algumas cláusulas contratuais.

Malu tinha 32 anos, fluência em inglês, alemão e italiano. Morena. Corpo de mulher. Abusava dos terninhos bem cortados. Calcinhas rendadas, sempre.

Aposto feito, voltemos à mente de Malu. Sidnei bem provavelmente era a combinação de vogais e consoantes mais ingratas dispostas em um nome próprio. Ademais, denotava, sob sua ótica, uma falta de zelo materna, um descaso viciado de má formação sócio-cultural que provavelmente englobaria três ou quatro gerações de Edsons, Klebers e Ubirajaras.

Pouco importava o fato de estar acompanhado. Poderia ser sua mulher, sua amante ou namorada. Poderia até se chamar Sidnei, Wanderlei. Ela o teria. O mais rapidamente possível.

Ele atacava cada naco de filé mignon com o zelo dos restauradores sacros e com a determinação dos melhores otomanos em combate. Mantinha, além disso, a cabeça erguida, o olhar decidido e uma incrível capacidade de equilibrar nos talheres todos os acompanhamentos na medida correta, enquanto mastigava como se os pedaços de carne que ingeria fossem provenientes de animais de caça, com gosto tão apurado quanto raro.

Antes da sobremesa e após ter cruzado seus talheres sobre a porcelana do restaurante, mais precisamente ao deixar o banheiro, Sidnei – até então o cara de blazer marinho – recebeu o cartão das mãos de Malu. Celular em batom.

O almoço do dia seguinte apenas reforçou as impressões sobre o moço. Enquanto Sidnei tentava sem muito sucesso e conteúdo chamar a atenção de Malu com mentiras tolas e pouco representativas, ela fixava seus olhares apenas nos talheres, mastigações e algumas passadas de língua no canto da boca.

Lá se iam quase vinte minutos de linguado com sauté e legumes quando de forma tão abrupta quanto impiedosa Malu verbalizou seu tão corriqueiro “cala essa boca e continua comendo, só comendo”. Sidnei acabara de tentar, sem sucesso, discorrer sobre o ultimo filme “que me fez parar pra pensar”. Havia confundido Andy Warhol com Andy Roddick.

Não houve crepe nem café.

Nem no Cais do Oriente nem na suíte 1205 do Hotel Glória pra onde foram e de onde saíram algumas horas depois.

Sidnei a havia incomodado muito. Não por ter dito que o vinho que haviam tomado era um pinot noir de qualidade, nem em função de ter repetido por três ou mais vezes que a televisão por assinatura havia sido a melhor invenção do homem depois do pôquer (falava isso rindo de lado e piscando um dos olhos).

Seu incômodo era fruto de uma verdade inexorável: Malu jamais havia sido fodida de forma tão avassaladora. “Eu fui fodida. Fo-di-da”, repetia à exaustão, ora em pensamento, ora entre os dentes.

Como de praxe havia dado o telefone errado e sequer havia pensado em pedir o do “cara que certamente mora em Laranjeiras”, forma pela qual havia catalogado Sidnei em sua cabeça.

O que se viu nos restaurantes da cidade nos dias que se seguiram foi uma Malu imersa numa busca incessante de novos parceiros. Até o que suas amigas chamavam de “Segunda Santa”, em homenagem ao único dia para o qual a morena dedicava o almoço para momentos de lazer, foi tomada pelo desejo sôfrego de Malu de encontrar alguém que pudesse tirar Sidnei de seus pensamentos.

Por duas – quase três – semanas Malu não se deitou com um único homem, a ponto do gerente do Glória ter telefonado receitando folhas de agrião, mel de laranjeira e moleton para as caminhadas na orla de Ipanema.

Nada lhe servia. Quando tudo parecia convergir para o final usual, uma batata mal cortada, um soluço após ingerir o Frango à Kiev ou mesmo a volta da taça à mesa com marcas perceptíveis de gordura lhe tiravam o tesão na última hora.

Malu estava só. Perdida nos meandros de sua própria loucura. Convicta de que sua solução passava obrigatoriamente pela reconstrução da figura de Sidnei.

Concentrava-se como quem se masturba, a imaginar seu homem envolto a quilos e quilos de spaghetti ao sugo, guardanapo protegendo a camiseta e dúzias de lata de sprite zero.

Nada. Não fodia ninguém. Sequer almoçava mais. Definhava como o padre do São Francisco.

Pouco tempo depois – coisa de meses apenas – casou-se. Um advogado razoavelmente bem sucedido. Um bom aluguel no Cosme Velho. Planejavam três filhos enquanto tomavam água de coco na Praia do Gunga em Maceió. Lua-de-mel que ainda passou por Recife e Fortaleza.

Sidnei. Sidney Roberto Nascimento Rodrigues, milhas dali, na Abolição, fechava sua terceira venda na mesma semana: um gol, quatro portas, ar de fábrica, verde Costa Rica. Sem direção. Nesse ritmo, até o fim do mês bateria sua meta.

Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 11/11/2008
Reeditado em 12/11/2008
Código do texto: T1278038
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